Revista de Direito Descentralizado
Em junho, o mês da nova lei e das novas aventuras legislativas, daremos início a uma análise jurídica da personalização das DAOs no Brasil.
Capítulo 3: Um vislumbre brasileiro do enquadramento de DAOs
Guilda de Jurídico da BanklessBR & DLT360 Consulting
Prezada nação Bankless,
O enriquecimento legislativo no universo de criptoativos é sem dúvidas algo crescente, que gera uma ansiedade e preocupação aos espectadores, entusiastas e operadores do direito. A importância de trabalhos como este, a Revista de Direito Descentralizado, é imprescindível para a compreensão das oportunidades e dos riscos das inovações que nos cercam.
Em especial, as DAOs estão ainda num limbo jurídico na maior parte das jurisdições, mesmo que existam algumas possibilidades - olhem nossos dois primeiros capítulos. No Brasil, não é diferente. A estrutura organizacional de uma comunidade descentralizada é uma surpresa tecnológica inimaginável aos fundadores do Direito Empresarial Brasileiro e mundial. Por isso, quando falamos desse assunto existe uma divisão ideológica e política clara, normalmente aqueles submersos no ambiente web3 vão contestar todo tipo de aproximação entre DAOs e estruturas jurídicas existentes. De outro lado, os mais pragmáticos verão os riscos inerentes às atividades exercidadas dentro de uma DAO e farão ao contrário, identificando propósitos das DAOs e se apoiando em estruturas existentes.
Visando identificar as possibilidades atuais das DAOs no contexto jurídico, é preciso levantar a cabeça a fim de enxergar mais longe. Por isso, essa revista tem como objetivo levantar a cabeça dos leitores e causar dúvidas que, ao mesmo tempo, não tem a pretensão de esclarecer. A cultura Bankless incentiva o proativismo, interdisciplinariedade, intercomunicação e a persistência necessária diante de tantas incertezas. Inovação é duvidável e progressista até se tornar conservodora e retrógrada, nada é imutável, respostas são reajustadas às realidades presentes.
Esse artigo te dará o ponto de entrada no universo jurídico empresarial brasileiro, mas as respostas de todas s questões impostas aos inovadores estão longe de serem encontradas num só artigo. Faça sua própria pesquisa, mas sempre conte com a gente para te dar o empurrão que precisar.
1. Conceito e Definições – Atividade Empresarial
1.1. Conceito e Definições – Atividade Empresarial
Segundo o autor Tavares Borba1, a organização da atividade é a condição básica para a definição de empresário, vejamos:
“É a organização que distingue o empresário do profissional autônomo. O autônomo opera pessoalmente ou, quando muito, com a colaboração de familiares ou de poucos auxiliares subalternos. O empresário apoia-se em uma organização, que poderá ser de pequena monta ou de grande expressão (...).”
Com inspiração na legislação italiana, o artigo 966 do Código Civil Brasileiro (CC) de 2002 institui o conceito de empresário. Com isso, empresário é quem “exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços."
Ainda nesta linha, o parágrafo único do citado artigo não considera empresário aquele que “exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.” Embora tais atividades também sejam econômicas, isto é, que produzam novas riquezas, elas não são reguladas pelo direito empresarial.
A atividade empresarial está diretamente relacionada ao empresário, que é quem a exerce. Segundo Tarcísio Teixeira2,
“a atividade é uma organização profissional para produção ou circulação de bens ou de serviços com a finalidade de lucro, de modo que a empresa é “justamente a atividade econômica organizada, exercida profissionalmente’’
Embora na linguagem coloquial, e não técnica, empresa possa ser confundida com a própria sociedade, vale ressaltar que empresa é a atividade econômica organizada, enquanto empresário/sociedade empresária – a pessoa natural ou a pessoa jurídica – é o agente dessa atividade.
A partir dessa definição é importante a atenção em alguns pontos:
· Se não exercer a atividade de modo profissional não é empresário;
· A atividade deve ser econômica, logo deve almejar alcançar lucro;
· A atividade tem que ser organizada;
· Não são empresários para fins legais os médicos, dentistas, contadores, advogados etc., exceto no caso de exercício da profissão como elemento de empresa, logo fazendo desaparecer as características personalíssimas do profissional, como em uma clínica médica.
Além das restrições acima, a lei brasileira também exige plena capacidade civil e não possuir impedimento legal para ser empresário. Alguns exemplos de indivíduos que não podem ser empresários são menores de 18 anos, magistrados e outros servidores públicos. Ainda, estes não podem ser Empresários Individuais, apenas sócios/acionistas.
Os empresários devem, em geral, cumprir os seguintes deveres:
(i) registro no órgão competente antes do início das atividades empresariais;
(ii) manter escrituração regular de seus negócios; e
(iii) levantar demonstrações contábeis periódicas.
O dever de registro no órgão competente tem como objetivos3:
· Tornar pública a atividade do empresário;
· Efetuar o cadastro do empresário, gerando um Número de Inscrição no Registro de Empresa (NIRE) e posterior registro no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) junto à Receita Federal;
· Proteger o nome empresarial;
· Iniciar a existência e assegurar a separação patrimonial e limitação de responsabilidade dos sócios.
Mas e se atividade empresarial for exercida sem o devido registro? Neste caso, se configurará uma situação de irregularidade, mas não de inexistência, uma vez que se reúna todos os requisitos do art. 966 do Código Civil, acima apresentado. Ou seja, se houver atividade empresarial de acordo com os requisitos da lei, considera-se que há empresa, mesmo que não haja registro, estando esta irregular. Entender-se-á no próximo capítulo como essas sociedades são vistas pelo ordenamento jurídico brasileiro.
1.2. Do empresário
Dando continuidade ao tema da atividade empresarial, o ordenamento jurídico aponta duas categorias de empresário (art. 1.150 do CC):
(i) O Empresário Individual (pessoa natural, mas com natureza jurídica);
(ii) A Sociedade Empresária.
O empresário individual é aquele que exerce sua atividade econômica sem a participação de sócios. A sociedade empresária, por sua vez, é um contrato entre duas ou mais partes. Os tipos de sociedade empresária são: sociedades comuns e em conta de participação, que não possuem personalidade jurídica e que serão tratadas no próximo capítulo, e sociedades simples, em nome coletivo, em comandita simples, limitada, anônima, em comandita por ações, e cooperativa, que possuem personalidade jurídica.
Vale apontar brevemente o que é a personalidade jurídica. Para Carvalho de Mendonça4
“a pessoa jurídica é a unidade jurídica, resultante da associação humana, constituída para obter, pelos meios patrimoniais, um ou mais fins, sendo distinta dos indivíduos singulares e dotada da capacidade de possuir e de exercer adversus ommes direitos patrimoniais’’
No caso das sociedades empresárias com personalidade jurídica, há dois grandes princípios norteadores5 que derivam dessa personalidade: a separação patrimonial e o princípio da limitação de responsabilidade. O primeiro significa que o patrimônio da empresa é diferente do patrimônio dos seus sócios (art. 795 do Código de Processo Civil), o que resulta na proteção ao patrimônio dos sócios quanto da própria sociedade. O segundo princípio também é uma forma de proteção aos sócios, uma vez que limitada a responsabilidade de acordo com sua participação na sociedade.
Em contrapartida, esses princípios não são aplicáveis ao empresário individual, uma vez que não ocorre separação de patrimônio, tampouco limitação de responsabilidade. E, como será abordado, também não protege as sociedades não personificadas.
1.3. Dos tipos societários
Sobre sociedades, o art. 981 do Código Civil define que “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados”.
Alguns pontos de destaque em relação à definição de sociedade dada pelo Código Civil brasileiro são:
a) As sociedades são constituídas por meio de contrato ou estatuto;
b) Os sócios podem ser pessoas físicas ou jurídicas e, em regra, deve ter pluralidade de sócios, mas existem exceções, como a sociedade limitada unipessoal, introduzida pela Lei n° 12.441/2011;
c) Os sócios devem contribuir para a sociedade, seja por meio de bens ou serviços, no entanto essa regra possui exceções. Algumas sociedades como a sociedade limitada não permite a integralização de capital por meio de serviços;
d) Pressupõe atividade econômica, logo não se confunde com associações e fundações;
Em relação à sociedade limitada unipessoal, o instituto, com inspiração em ordenamentos jurídicos europeus, veio como uma forma de trazer a limitação da responsabilidade para o sujeito que quer explorar a atividade.6 Essa possibilidade trouxe consigo inúmeras discussões acerca de sua natureza jurídica, uma vez que a pluralidade de sócios é inerente à natureza de uma sociedade. De forma bastante sumária, pode-se entender que a limitação de responsabilidade se refere somente ao aspecto patrimonial, e não à existência de outro sujeito de direitos.
Como já mencionado, há diferentes tipos de sociedades previstos no ordenamento jurídico brasileiro. A fim de configurar um panorama geral, abaixo apontaremos as principais características de cada uma delas. No grupo das sociedades personificadas encontramos:
A sociedade simples é determinada pelo seu objeto social, uma vez que é constituída entre profissionais que desenvolvem atividades intelectuais de natureza científica, literária ou artística, não sendo, portanto, uma sociedade empresária.
A sociedade em nome coletivo, por sua vez, é pouco usada no Brasil por necessariamente ser composta por pessoas físicas que responderão solidaria e ilimitadamente pelas obrigações da sociedade perante terceiros.
Já a sociedade em comandita simples, diferente da em nome coletivo, possui sócios com responsabilidade limitada, que são chamados de sócios comanditários, e sócios com a responsabilidade ilimitada e solidária, que são chamados de sócios comanditados.
A sociedade em comandita por ações se assemelha à sociedade em comandita simples por também ter duas categorias de sócios com responsabilidades diferentes, no entanto ela possui seu capital divido em ações, sendo regida pelas normas relativas às sociedades anônimas.
As sociedades anônimas (SAs), também chamadas de companhias, possuem capital social dividido em ações e a responsabilidade dos sócios ou acionistas é limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas, nos termos do art. 1° da Lei n° 6.404/76. Quanto ao capital social, as SAs podem ser de capital aberto, podendo ou não listar suas ações na bolsa de valores, ou fechado, As SAs abertas e listadas na bolsa são reguladas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e consequentemente possuindo maiores exigências regulatórias.
O tipo societário mais comum no Brasil é o das sociedades limitadas, uma vez que pode ser constituída por uma ou mais pessoas, a partir da Lei de Liberdade Econômica, com a criação da sociedade limitada unipessoal. Há que se destacar que neste tipo societário a responsabilidade é limitada e subsidiária.
A cooperativa também possui natureza de sociedade simples e pode ser de responsabilidade limitada ou ilimitada, mas possui características bem particulares como: variabilidade, ou dispensa do capital social; limitação do valor da soma de quotas do capital social que cada sócio poderá tomar; direito de cada sócio a um só voto nas deliberações, entre outros constantes no art. 1.094 do Código Civil.
No contexto das DAOs, sabe-se que em algumas partes no mundo se utiliza a estrutura de cooperativas para o seu registro, porém no Brasil as cooperativas necessariamente precisam ser administradas por uma Diretoria ou Conselho de administração, composto exclusivamente de associados eleitos por Assembleia Geral, além de possuir algumas exigências muito burocráticas, como livros de matrícula, atas de assembleias gerais, de órgãos de administração, do Conselho Fiscal e a presença de associados nas assembleias gerais, bem como outros livros fiscais ou contábeis obrigatórios.
Mas e as sociedades não personificadas? Quais são as suas implicações jurídicas? As DAOs se enquadram nesse formato? Vamos abordá-las em um capítulo totalmente dedicado a essas questões.
2. Sociedades não personificadas
Além das sociedades acima apresentadas, temos no ordenamento brasileiro as sociedades não personificadas, que, como já mencionado, não possuem registro no órgão competente e, consequentemente, não tem personalidade jurídica.
Como sociedades não personificadas, existem a sociedade comum e em conta de participação.
2.1. Sociedade comum
A sociedade comum é chamada de “irregular ou de fato”, pois ainda não possui seus atos constitutivos inscritos no órgão competente. Sendo assim, nesse lapso de tempo em que a sociedade existe, mas não é registrada, ela é regulada pelos arts. 986 e seguintes do CC.
Mas, então, como provar que essa sociedade de fato existe? O código civil determina que os sócios apenas conseguem provar com prova escrita, enquanto um terceiro pode provar de qualquer modo (art. 987 do CC). A título de exemplo, alguns atos servem como indicativos da existência da sociedade comum: negociação promíscua e comum, uso de marca comum, pagamentos comuns.7
Em relação à responsabilidade, todos os sócios respondem solidária e ilimitadamente pelas obrigações geradas; logo todos os sócios podem ser cobrados pela obrigação na íntegra (Responsabilidade solidária) e não há limite para a obrigação que pode ser gerada. O sócio, nesse caso, pode precisar usar seu patrimônio pessoal para satisfazer obrigações (responsabilidade ilimitada).
Vale ressaltar que sociedades não personificadas geram mais riscos para os seus sócios, pois a personalidade jurídica é, sobretudo, a capacidade de um ente adquirir direitos e contrair obrigações para si, logo os seus sócios podem agir em seu nome, porém não são eles que figuram nas relações, e sim a pessoa jurídica.
Neste sentido, a personalidade jurídica permite que um grupo de pessoas unido por um fim comum gere um ente com autonomia patrimonial distinta de seus integrantes. De modo exemplificativo, em uma sociedade personificada pode haver três patrimônios distintos: (i) o da sociedade; (ii) o do seu sócio 1; (ii) o do seu sócio 2. Logo, a dívida de uma sociedade não se comunica, em regra, com a dívida de seus sócios, sendo a personalidade jurídica que dá esse poder ao ente jurídico de ser titular dos fatos oriundos da sociedade.
Porém, essa divisão de bens não existe quando falamos de sociedade não personificada. E é por isso que sociedades não personificadas geram mais riscos patrimoniais aos seus sócios, uma dívida contraída pela sociedade ou pelo sócio será “cobrada” dessa confusão patrimonial.
2.2. Sociedade em conta de participação
Além da sociedade comum, há a sociedade em conta de participação, também não personificada. Ela representa uma modalidade de contrato de investimento e existe apenas entre os sócios, mas não perante terceiros8. Segundo o art. 991 do Código Civil:
“na sociedade em conta de participação, a atividade constitutiva do objeto social é exercida unicamente pelo sócio ostensivo, em seu nome individual e sob sua própria e exclusiva responsabilidade, participando os demais dos resultados correspondentes”.
Sendo assim, nesta modalidade societária apenas o sócio ostensivo, que é quem administra e realiza a atividade econômica da empresa, possui responsabilidades sobre as obrigações contraídas, sendo que a prova de existência dessa sociedade pode se dar por todos os meios de direito. Já o sócio participante (ou oculto) não possui responsabilidade perante terceiros.
Logo, a grande diferença é que na sociedade em conta de participação o sócio participante pode participar dos resultados, mas não se responsabiliza pelos seus efeitos.
2.3. Jurisprudência
Nota-se que a jurisprudência já consolidou elementos para a identificação de uma sociedade de fato. Vejamos:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE SOCIEDADE DE FATO – NECESSIDADE DE PROVA DOS REQUISITOS ESSENCIAIS DA SOCIEDADE - ÔNUS PROBATÓRIO DA PARTE AUTORA – As sociedades de fato são aquelas que não possuem personalidade jurídica em decorrência da ausência de registro. Em face da irregularidade na constituição, configuram-se como sociedades não personificadas – Para o reconhecimento da existência de uma sociedade de fato, torna-se imprescindível à prova dos requisitos de constituição mencionados alhures: a) pluraridade de sócios; b) constituição do capital social; c) affectio societatis; d) co-participação nos lucros e perdas – Incumbe à parte autora à prova do fato constituivo de seu direito.” Gnf. (TJMG - Apelação Cível 1.0051.16.002518-8/001, Relator(a): Des.(a) Alexandre Santiago , 11ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 07/08/2019, publicação da súmula em 13/08/2019)
De forma clara e objetiva, a Ementa acima é de uma ação judicial em que uma parte desejava reconhecer a existência de uma sociedade de fato, para em seguida dissolvê-la. Neste Acórdão, o relator declarou que, para que houvesse o reconhecimento da organização como sociedade de fato, seria necessário a comprovação da pluralidade de sócios, constituição/integralização de capital social, affectio societatis e coparticipação nos lucros e perdas.
O affectio societatis, em síntese, é uma característica subjetiva existente nas empresas, uma vez que há nos sócios a “vontade” de pertencer e permanecer na sociedade.
Analisando uma DAO, na maioria dos casos, não seria difícil para um membro conseguir comprovar os requisitos supracitados, uma vez que todo o relacionamento da comunidade é registrado via Discord ou outros mecanismos tecnológicos. Ainda, os membros trazem contribuições, seja através de serviços ou na compra de tokens.
Nesse ínterim, se reconhecida como sociedade não personificada, os membros da DAO poderiam ter consequências significativas a partir da responsabilidade solidária e ilimitada nas obrigações sociais, conforme será demonstrado no próximo capítulo.
3. Possibilidades de Adequação
Superada a definição de atividade empresarial e a breve apresentação dos tipos de sociedade não personificadas no Brasil, passaremos a analisar como uma DAO poderia se adequar no ordenamento jurídico brasileiro.
As Organizações Autônomas Descentralizadas (DAO) são:
"organizações, agremiações, coletivos, associações e empresas edificadas sob um propósito e cuja gestão é desenvolvida com base na governança por meio de tokens, conjugando amplas ferramentas de interface aberta para colaboração coletiva.”9 [1]
Como o próprio nome indica, elas têm como principal característica a descentralização. A governança dessas organizações não é hierárquica e é organizada através da detenção de tokens.
Como discutido em outros artigos da revista, [BS1] há lugares que já aprovaram regulamentação em relação às DAOs, como o estado de Wyoming, nos Estados Unidos, que equiparou as DAOS às LLCs (limited liability corporations). Outros países também estão avançados nas discussões sobre Web3, como Cayman Islands e Suíça, inclusive com a possibilidade de constituição de fundações na forma de DAOs. O Brasil, no entanto, ainda não possui nenhum movimento nesse sentido.
Dentro do ordenamento jurídico brasileiro há inúmeros institutos que contemplariam, a depender do caso concreto, similaridades com a ideia da DAO. Nesse sentido, o presente capítulo versará sobre a possibilidade de adequação das DAOs aos: (i) Condomínios; (ii) Sociedades Empresárias Personificadas; e (iii) Sociedades Empresárias não Personificadas.
3.1. Condomínios
Inicialmente trataremos da aproximação das DAOs com a figura dos Condomínios no ordenamento jurídico brasileiro. Esse instituto, apesar de possuir CNPJ, não foi inserido pelo legislador no rol de pessoas jurídicas do Código Civil (art. 44). Da mesma forma, não pode ser considerado ou caracterizado como pessoa física. De maneira simplificada, trata-se de um ente sui generis que nasce de uma reunião de pessoas com fim comum.
Nas palavras do doutrinador Caio Mário da Silva Pereira:’’Dá-se condomínio, quando a mesma coisa pertence a mais de uma pessoa, cabendo a cada uma delas igual direito, idealmente, sobre o todo e cada uma de suas partes.’’10[1]
Cada Condômino possui uma quota ou fração ideal da coisa e não uma parte material dela e todos têm direitos qualitativamente iguais sobre a totalidade da coisa. Considerando os direitos e deveres dos Condôminos de um Condomínio Voluntário previstos no art. 1.314 e seguintes do Código Civil, poderíamos traçar um paralelo entre os dois institutos. De um lado o Condômino Voluntário tem a prerrogativa de utilizar-se da coisa conforme sua destinação, porém não possui poderes e autorizações para alterar sua a destinação sem o consenso e aprovação dos outros Condôminos. Nesse sentido, os membros da DAO podem usufruir de tal organização para o fim previsto, restando a tomada de decisões condicionada à aprovação dos outros membros.
Entretanto, em uma análise minuciosa, são identificados alguns pontos conflitantes, dentre esses, salienta-se a necessidade de eleição/nomeação de um administrador para o Condomínio, através da votação da maioria absoluta de seus membros, figura essa que não é admitida em uma DAO.
Outro ponto que carrega potencial divergência entre os dois institutos é a oponibilidade erga omnens11. No Condimínio, se, por exemplo, a convenção for devidamente registrada em cartório, essa possui efeito erga omnes. Uma DAO, por outro lado, possuindo registro apenas na blockchain, não possui tal efeito contra terceiros.
3.2. Sociedades Empresárias Personificadas
Outro cenário é a aproximação das DAOs com as Sociedades Empresárias Personificadas. Para tanto, é imprescindível que a DAO tenha como finalidade a obtenção de lucro, estando organizada sob a forma de uma sociedade e cumprindo com os requisitos e execução de atividades enquadradas como de cunho empresarial.
Considerando que as DAOs têm como princípio básico não possuírem uma hierarquia entre os membros, o seu enquadramento como uma pessoa jurídica poderia ir contra esse alicerce. Isto porque a lei brasileira impõe diversas obrigações à essas sociedades, principalmente às sociedades limitadas e anônimas, tal como necessidade de um ou mais administrador(es), conforme disposto no Art. 138 da Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404 de 1976).
Outro ponto de atenção é o registro. As DAOS são registradas on-chain, e as sociedades obrigatoriamente através de ato público, de acordo com o art. 32, II da Lei n° 8.934/94, diferença substancial.
Apesar dos pontos supracitados, é possível, como realizado no Estado de Wyoming (EUA), a adequação de uma DAO à uma sociedade limitada (LLC, em Wyoming). A legislação de Wyoming, aprovada em 2021, permite que as decisões de uma DAO LLC sejam tomadas através de Smart Contracts e permite a igualdade entre todos os membros, diferente de em uma LLC usual.
Dado que não há legislação específica no Brasil, a DAO seria adequada à uma sociedade limitada usual. Essa equiparação pode ser benéfica para as organizações descentralizadas ao: (i) limitar a responsabilidade dos membros; (ii) evitar dupla tributação; (iii) é bem menos burocrático que uma Sociedade Anônima.
É, no entanto, necessário relembrar que o próprio registro como pessoa jurídica pode, de certo modo, ir contra a natureza descentralizada da DAO, uma vez que é legalmente exigida uma sede, um representante legal etc.
3.3. Sociedades Não Personificadas
Por fim, versaremos sobre a possibilidade de aproximação da figura das DAOs com as Sociedades Não Personificadas. Como já mencionado no capítulo anterior, nem toda sociedade é pessoa jurídica e o ordenamento jurídico brasileiro reconhece a existência de duas sociedades não personificadas: a sociedade comum e a sociedade em conta de participação.
Essas sociedades não são registradas nos órgãos competentes, indo ao encontro da lógica de uma Organização Descentralizada, que é usualmente registrada apenas na Blockchain, através dos Smart Contracts. Dessa forma, caso uma DAO contenha as características de atividade empresarial, poderia, inclusive despropositadamente, ser enquadrada como sociedade comum, ou, possuindo características de investimento, como uma sociedade em conta de participação.
Na hipótese de adequação de uma DAO com uma sociedade em conta de participação, é importante lembrar que esta possui duas categorias de sócios (ostensivo e participantes) e apenas o sócio ostensivo assume responsabilidades perante terceiros. Tal característica é contrária à essência da DAO de não possuir um representante e tampouco uma hierarquia, de modo que a figura do sócio ostensivo poderia descaracterizar esse elemento de descentralização.
A sociedade comum, por sua vez, pode ser considerada como qualquer empresa não registrada no órgão competente que possua os requisitos mínimos colocamos pelo Código Civil, de forma que uma DAO poderia se enquadrar como tal. Entretanto, vale destacar que o Código Civil disciplina essa sociedade como transitória, esperando que em algum momento ela inscreva seus atos constitutivos, o que não ocorreria com a DAO, que seria permanentemente uma sociedade irregular.
Conclusão
O objetivo principal desse artigo é entender o que se enquadra como atividade empresarial no ordenamento jurídico brasileiro, bem como os conceitos de empresário, sociedades empresárias e seus tipos societários. A partir disso, buscamos comparar essas estruturas, desenvolvidas para modelos tradicionais de empresa, à realidade das DAOs, o que, como esperado, não trouxe respostas assertivas e/ou conclusivas, uma vez que ainda há muito o que ser desenvolvido na lei brasileira para recepcionar Organizações Descentralizadas.
No entanto, entendemos que, havendo DAOs que atuam de forma organizada e profissional, estas podem ser enquadradas como Condomínios. Adicionando a busca pelo lucro, estas, querendo ou não, podem ser enquadradas como sociedades, sejam personificadas ou não personificadas a partir da legislação brasileira. No caso das não personificadas, apesar de serem sociedades não dão às DAOs os benefícios da personalidade jurídica, como as facilidades na operação fora da blockchain, no pagamento de impostos e declarações, e, igualmente importante, o livramento da perigosa responsabilidade solidária e ilimitada a partir dos patrimônios pessoais.
É muito importante que os criadores e os participantes de DAOs entendam esta realidade e a importância de uma estrutura jurídica formal, apesar de não haver ainda uma estrutura ideal que garanta as características básicas das DAOs.
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BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 14ª Edição. Atlas. p.14.
TEIXEIRA, Tarcisio Direito empresarial sistematizado : doutrina, jurisprudência e prática /. – 8. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2019.
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Disponível em: Revista de Direito Descentralizado (banklessbr.com)
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil – Vol. IV / 25. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2017.
Que tem efeito contra todos.