CAPÍTULO 1: O QUE SÃO DAOs E COMO ELAS SE GOVERNAM?
Guilda de Jurídico da BanklessBR & DLT360 Consulting
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Prezada nação Bankless,
A tecnologia blockchain[1] é uma revolucionária maneira de armazenamento de dados que passou despercebida até 2008, quando Satoshi Nakamoto[2] inventou o Bitcoin e, com ele, uma nova espécie de dinheiro, as criptomoedas.
Desde 2008, muita coisa mudou. Essa invenção deu espaço para novas oportunidades de criação, como no caso de Finanças Descentralizadas – independência de bancos – e das próprias Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs). Além disso, novas criptomoedas foram surgindo, de tal forma que hoje é impossível fazer a conta de quantas existem. Essa quantidade infindável é um problema, já que é impossível verificar quais protocolos e plataformas são realmente seguras.
Com efeito, o universo Web3 (trazido pela tecnologia Blockchain) está passando por problemas delicados nos últimos meses e existem várias razões para esse cenário. Não é o objetivo desse artigo fazer um estudo muito aprofundado dessas razões, mas existem alguns pontos que devem ser considerados para entender e identificar o próprio objetivo da Revista de Direito Descentralizado.
Por um lado, tem-se o chamado Crash do mundo cripto, de 2021 e 2022, consequência da própria situação macro-econômica mundial, que se mostra incerta, com elevada alta de juros, inflação, risco de recessão e a própria crise da Ucrânia – afinal, a criptoeconomia [3] também é regida por regras gerais da economia.
Por outro lado, casos de fraudes, a derrocada da Terra Luna – e outras stablecoins – e vários outros problemas acontecidos ao longo de 2021 e 2022 intensificaram esse movimento de queda.
Esse momento de instabilidade e vulnerabilidade do mundo cripto cria oportunidade de ações agressivas dos Governos contra esse universo, um exemplo claro disso é o próprio caso Tornado Cash [4].
Daí a relevância do presente estudo, chamado Direito Descentralizado, que procura entender até que ponto o Direito está adaptado aos novos meios de tecnologia e qual a extensão de proteção delas. O aprofundamento desse novo ramo do Direito possibilita a previsão de riscos futuros dentro desse universo e, também, proteção contra eles.
Durante o período de seis meses, as DAOs serão o foco da Revista de Direito Descentralizado e o objetivo é utilizar a Bankless Brasil DAO como caso de sucesso. Portanto, nessa primeira publicação, será introduzido o tema de DAOs: o que as diferenciam de uma empresa tradicional e quais são os modelos de governança exercidos por elas?
Em setembro, o tema estudado será a legislação exterior, dentre as quais serão estudados os países Suiça, Ilhas Cayman, Ilhas Marshal, Estados Unidos da América e Singapura. Nos meses seguintes, o foco será o Brasil e revisitaremos conceitos de empresários, possibilidades de adequação de DAOs nas concepções de empresas existentes hoje, responsabilidade de membros e muito mais.
1. AS ORGANIZAÇÕES AUTÔNOMAS DESCENTRALIZADAS (DAOs): SURGIMENTO E CARACTERÍSTICAS
1.1 EVOLUÇÃO DAS EMPRESAS E O SURGIMENTO DAS DAOs
Desde a fundação da sociedade civil, o comércio impacta o progresso econômico e o funcionamento do mundo, de forma a facilitar a circulação de bens e serviços através de atividades organizadas.
Para chegarmos ao estágio atual das empresas, atravessamos diversos ciclos econômicos e marcos históricos. Desde a antiguidade, passando pelo período feudal e a modernidade, o mundo passou por incontáveis e significativas mudanças, sempre alinhadas com o contexto social.
Durante essas passagens, pudemos experimentar diversos modelos de empresas, que iam desde os negócios mais primitivos, baseados em escambo de mantimentos, passando pela burguesia e as grandes navegações, com a elevação da autonomia mercantil e comercial, o advento da revolução industrial até, finalmente, o rompimento total de diversos paradigmas tecnológicos nos séculos XX e XXI.
As empresas nasceram da necessidade de regulação da atividade econômica e, não por acaso, se tornaram o maior arauto do progresso na modernidade, até o ponto em que foram reconhecidas como organizações munidas de personalidade jurídica. Em outras palavras, avançamos na regulação até o marco da separação patrimonial ampla entre as entidades e os indivíduos.
Se por um lado o conceito tradicional de empresas parece bem claro, as Decentralized Autonomous Organizations (DAOs) ou Organizações Autônomas Descentralizadas surgiram para ressignificar o modo como enxergamos e operamos o mercado tradicionalmente, e é resultado das aplicações da tecnologia Blockchain nos negócios.
A sigla também representa as Distributed Autonomous Organizations (Organizações Autônomas Distribuídas), embora devamos nos concentrar nas descentralizadas no presente texto.
Normalmente o termo é usado para descrever uma organização virtualmente nativa incorporada em código aberto (software) e executada em uma blockchain – ou em um ledger distribuído. Esse é o conceito mais difundido e consolidado, embora pareça claro que a tecnologia funciona mais como uma ferramenta para gestão de recursos, tomada de decisões e coordenação de atividades.
Em análise mais frontal e sintética, as DAOs são organizações, agremiações, coletivos, associações e empresas edificadas sob um propósito e cuja gestão é desenvolvida com base na governança por meio de tokens, conjugando amplas ferramentas de interface aberta para colaboração coletiva.
Assim, são emitidos e ofertados tokens de governança para que qualquer indivíduo, a depender das condições regulatórias, possa adquiri-los e, assim, participar do processo de gestão.
Essa condição permite aos participantes, por exemplo, formularem propostas e participarem das tomadas de decisão. Por isso, é chamada de descentralizada, não existe um grupo fechado de pessoas que decidem como quiserem o futuro da organização.
Além de fonte de financiamento da DAO, a venda dos tokens poderá garantir maiores níveis de descentralização, impedir sybil attacks [5] e até reduzir problemas mais complexos, como o risco moral e a seleção adversa [6].
Normalmente as DAOs estão envoltas por comunidades que auxiliam no desenvolvimento das suas atividades-fim. Como era de se esperar, são os detentores dos tokens de governança que guiarão essa comunidade, mesmo que o espaço seja aberto para que outras pessoas conheçam e componham a organização.
Todo o processo de votação deve ocorrer de maneira autônoma pela rede Blockchain, de modo que a segurança e a autenticidade sejam de fácil averiguação. Isso inclui todas as regras de governança.
Além disso, é necessário que as regras de governança implementadas sejam destinadas a impedir que a DAO atenda a interesses opostos ao seu propósito e à sua comunidade.
Essa perspectiva nos conecta à máxima code is law, de Lawrence Lessig, pela qual se observa que os códigos computacionais (softwares) podem ser um instrumento de controle social tal como a própria lei.
No contexto das DAOs, significaria dizer, por exemplo, que o código-fonte deverá estar coordenado com boas práticas e regulações para assegurar a proteção dos investidores e que as normas de governança implementadas no código devem prover garantias.
Um exemplo claro disso seria a necessidade de delinear se as decisões serão tomadas em um voto por token ou em outros formatos. Caso seja o primeiro, devem ser utilizadas regras para impedir que “baleias” afetem o resultado em desfavor dos interesses e propósito da DAO.
Essas condições possibilitam um grau de transparência que está intrínseco à própria tecnologia Blockchain, como a possibilidade de tomar decisões de maneira mais eficiente e num nível de coordenação sem precedentes.
1.2 AS EMPRESAS TRADICIONAIS EM CONTRASTE COM AS DAOs
É muito comum que novos conceitos, assim que apresentados, pareçam algo muito distante da realidade já existente. Na prática, as DAOs não deixam de ser empresas, embora sejam completamente inovadoras no formato de gestão.
No momento, é necessário entender que as DAOs são compostas por padrões pouco simétricos aos que nos acostumamos.
Talvez pelas próprias características das Organizações Descentralizadas, a comparação mais justa e métrica é com as sociedades anônimas.
Como limitações, as DAOs devem lidar por um longo período com um ambiente de incerteza jurídica e isso tem consequências muito claras, como a dificuldade de definir os papéis dentro da governança, distúrbios fiscais e restrição de ferramentas ante a informalização.
Esses limites vão de encontro ao grande impasse na formalização das DAOs. Ante a informalização, há riscos quanto à responsabilidade jurídica e à separação patrimonial. Por outro lado, não há modelos muito claros a serem adotados para a constituição de uma DAO no Brasil.
Em outros países, há soluções jurídicas sendo desenvolvidas e algumas opções vêm sendo adotadas pelas comunidades para a mitigação desses riscos, como o uso de offshores e acordos de acionistas. Por outro lado, todas as soluções envolvem custos consideráveis para negócios pouco capitalizados.
Por outro lado, todas as novas soluções enfrentam problemas semelhantes, já que há uma lacuna entre a atividade legislativa e a evolução tecnológica.
Sabendo disso, devemos encarar as inovações como oportunidades para otimizar processos que se tornam obsoletos ou substituí-los por novas opções. Sem a existência dessas experiências, os negócios permaneceriam engessados por longos e longos ciclos econômicos sem que pudéssemos avançar efetivamente.
1.3 DAOS – PRECURSORAS DE UMA NOVA JORNADA
Inicialmente, será fundamental destrinchar sobre elementos já mencionados e verificar como as DAOs melhoram e adaptam os processos de gestão empresarial.
Como já afirmado, os atributos da Blockchain permitem que as DAOs desenvolvam as atividades sob um formato de gestão singular: a governança por tokens. Porém, isso não deve ser encarado como um aspecto restritivo e, normalmente, as DAOs estão integradas com diversas plataformas, como o Discord, para facilitar a gestão de processos e a comunicação entre os membros.
Notadamente, a capacidade de ampliar a tomada de decisões democraticamente é o maior trunfo desse novo formato. Por outro lado, seria imprescindível que a organização apontasse diretamente para caminhos que impedissem a existência de uma empresa mal formatada.
É necessário que o ecossistema em torno da governança permita que haja uma descentralização de fato. Caso isso não seja observado, poderemos estar diante de uma sociedade não personificada e não de um novo conceito.
Embora haja uma ênfase muito grande sobre o emprego dos recursos tecnológicos, as DAOs possuem uma capacidade de adaptação extremamente favorável ao desenvolvimento do negócio. Na prática, elas funcionam como um ecossistema em sandbox (seria interessante explicar o termo, via referência de rodapé), podendo experimentar diversas inovações em termos de gestão.
A dificuldade de equacionar as vozes dentro da gestão empresarial é uma grave falha do sistema corporativo e as DAOs têm oferecido uma proposta ao sistema de gestão hierárquica, embora a existência de um software e dos tokens, por si só, não sejam um atestado de descentralização.
A centralização não é barata, isso é facilmente perceptível quando observamos os custos com os executivos. O brilhantismo das DAOs está, ainda, na facilidade de gerir e adaptar os incentivos, sem que seja necessário empregar salários estratosféricos e potencializar os “dilemas da agência” [7], reduzindo drasticamente o domínio da administração por um grupo pequeno grupo de executivos.
As DAOs compartilham esse problema, mas em uma escala menor. Deve haver um cuidado ao definir as regras de governança, a fim de que determinadas decisões não sejam desnecessariamente centralizadas para alguns nichos dentro da comunidade, de maneira que o interesse da comunidade possa ser prejudicado.
Por outro lado, há desafios substanciais nas DAOs no campo da estruturação organizacional: definir responsabilidades, sistematizar tarefas e capacitar os membros a utilizarem os ecossistemas são alguns deles.
Somadas à governança por tokens, as DAOs possuem uma série de vantagens em relação aos modelos tradicionais: baixas barreiras de entrada e saída, adaptabilidade e amplitude global.
Nas empresas tradicionais, há limites muito claros na participação dos investidores na governança e não há como solucionar esse dilema sem muitos custos, uma vez que as corporações já foram completamente estruturadas sob outra perspectiva.
O ponto chave para o funcionamento pleno e diferencial das DAOs dentro do mercado é o sistema de votação. É necessário selecionar o melhor método de votação e alinhá-lo com o propósito da organização e os interesses da comunidade.
Um exemplo prático é a comunidade entender que tomadas de decisões específicas sejam melhor geridas por grupos específicos do seu etos. Ou, ainda, que determinadas decisões exigirão algum grau de participação na comunidade.
Claro que todas essas regras de governança devem ser analisadas e os melhores sistemas devem ser adotados para otimizar o funcionamento e crescimento da DAO.
Com todo o debate em análise, não é possível dizer que todos os negócios comportam o formato adotado pelas DAOs ou que as DAOs são melhores ou piores. Isso dependerá do objeto, do propósito e dos mercados que serão desenvolvidos.
Entretanto, está muito claro que o modelo das DAOs tem características únicas, que possibilita uma maior inclusão dos membros na gestão, trazendo mais segurança, transparência e lidando de maneira mais eficiente com diversos custos de agência.
1.4 CATEGORIZAÇÃO DE TOKEN: TOKEN DE GOVERNANÇA
Os Tokens de Governança formam uma parte integral da infraestrutura Web3. Antes de mergulhar no assunto, faremos uma investigação geral. A tokenização é o processo de converter, virtualmente, qualquer coisa de valor em tokens digitais. Isto tecnicamente existe desde a década de 1970, como uma forma de proteger dados confidenciais. Originalmente, o processo envolvia a conversão de dados como números de previdência social, em uma cadeia de caracteres alfanumérica, antes de aplicar uma função criptográfica para criar tokens exclusivos. Os tokens Blockchain seguem uma versão mais avançada disso, e assim, carregam uma gama muito mais ampla de casos de uso.
O primeiro token blockchain Maid Safe Coin apareceu em abril de 2014, no entanto, não foi até mais tarde que experimentamos uma explosão de tokens ecléticos. Em 2017, por exemplo, o ano iniciou com aproximadamente 50 tokens, encerrando com mais de 400. Hoje, contamos com milhares de tokens blockchain, com utilidades distintas.
Existem diversos tipos de tokens no mercado, representando ativos/projetos diferentes. O Ethereum é atualmente o mais prolífico ecossistema blockchain em que tokens estão prosperando. Isso é graças aos padrões de desenvolvimento Ethereum governados pela comunidade (ERC). Dois dos padrões ERC mais notáveis são ERC-20 para tokens fungíveis (universais, intercambiáveis) e ERC-721 para tokens não fungíveis (exclusivos, não substituíveis). Nos padrões mencionados anteriormente, estão tokens com propósitos específicos, abordados a seguir.
Security Tokens refletem uma participação na organização que emite o token. São investimentos com fins lucrativos, frequentemente regulamentados por lei como títulos tradicionais. Esses tokens também podem ser usados para alimentar mecanismos de consenso distribuído, como o “Proof of Stake”, ajudando a proteger a rede maior em troca de recompensas.
Utility Tokens têm alguma forma de utilidade dentro de um ecossistema blockchain. Dentro dessa categoria, por exemplo, existe o Basic Attention Token (BAT), usado para recompensar usuários por anúncios consentidos e permitir incentivos monetários para criadores de conteúdo em diversas plataformas. A princípio, eles não são classificados como títulos, e, portanto, são amplamente não regulamentados, podendo haver exceções. Governance Tokens caem sobre o guarda-chuva dos Utility tokens e representam um avanço interessante na categoria, o que significa que eles não são apenas sobre governança. Os titulares teoricamente também podem apostar, “staking” e ganhar dinheiro através do “yield farming”, que se assemelha a juros sobre dinheiro alocado. No entanto, o objetivo principal continua sendo o consenso da comunidade/distribuição de poder de decisão.
Em geral, governança refere-se a sistemas que facilitam decisões/coordenação entre uma sociedade. Tokens de Governança são tokens projetados especificamente para aproveitar o consenso da comunidade e distribuir controle/propriedade. Esses tokens não apenas fazem parte integrante da infraestrutura Web3, mas também formam um componente muito necessário.
Os tokens de governança estão ajudando a resolver dois problemas primários precedentes: 1) financiar adequadamente os bens públicos e 2) coordenar as decisões de manutenção/atualização. Críticas, entretanto, também podem ser feitas: 1) Tragédia dos Comuns: onde pequenos grupos de indivíduos ricos ("baleias") têm influência significativa nos resultados das votações e agem de acordo com os interesses próprios. 2) Votação por moedas a governança permite que os interesses dos ricos detentores de moedas (aumento excessivo do preço das moedas) às custas de comunidades menores (como a extração prejudicial do aluguel)[8].
As oportunidades estão se formando: 1) A delegação pode ajudar a aliviar a tragédia dos problemas comuns, pois permite aos indivíduos selecionar membros da comunidade em que confiam para julgar decisões menores e votar em seu nome. 2) Algoritmos de votação (votação quadrática, financiamento retroativo de bens públicos, etc.) podem ser usados para reduzir a desigualdade de votos entre as comunidades. 3) As Organizações Autônomas Descentralizadas (DAO's) estão surgindo como uma nova forma de governança coletiva, pela qual as comunidades operam em infra-estrutura descentralizada sem uma autoridade centralizada.[9] Ainda nos primeiros dias.
2. GOVERNANÇA: TOMADA DE DECISÕES
2.1 INTRODUÇÃO E PROBLEMAS DO PRINCIPAL MODELO DE GOVERNANÇA TRADICIONAL
Nesta parte do artigo abordaremos alguns dos principais modelos de votação utilizados pelas DAOs nos dias de hoje. Certamente não será possível abordar todos os sistemas de voto existentes, afinal estamos nos referindo a um ecossistema descentralizado, em que cada organização pode criar regras próprias e adaptar cada um dos modelos existentes para a demanda da sua própria comunidade (até mesmo por isso o mesmo modelo de votação pode ter diferenças a depender da DAO analisada).
Muito embora ainda não exista um modelo perfeito de votação em DAOs (talvez nunca exista, já que diferentes comunidades demandam diferentes sistemas de votação), não há como negar que as tentativas atuais já representam um grande avanço quando o assunto é tomada de decisões descentralizadas e o uso de blockchain. Antes de adentrar especificamente em blockchain e DAOs, é importante detalhar o modelo tradicional de voto mais utilizado ao redor do mundo: uma pessoa, um voto.
Também conhecido como “one person, one vote” ou até 1P1V. É o modelo utilizado, por exemplo, na democracia brasileira, em que os cidadãos vão às urnas expressar seu voto nos governantes, possuindo, cada cidadão, o “direito” (ou obrigação) de externalizar um voto.
Esse modelo é muito defendido até os dias de hoje, e é visto, muitas vezes, como instrumento indispensável para defesa da equidade política. Essa visão se deve principalmente ao fato de esse sistema ter sido um resultado de várias reformas eleitorais e por ter marcos consideráveis, como o sufrágio universal e a eliminação do voto plural. Apesar disso, não há como negar que esse modelo possui uma série de problemas.
Primeiramente, os eleitores possuem pouco incentivo para votar, afinal a probabilidade de que um único voto não tenha qualquer impacto no resultado de uma eleição é extremamente alta. Com isso, racionalmente, o tempo gasto votando costuma exceder o “valor” ou “retorno” obtido pelo voto.
Além disso, o eleitor também precisa gastar um significativo período de tempo analisando os diversos candidatos para escolher algum que mais se aproxima às suas convicções. E isso faz o ato de votar ser ainda menos estimulante ao eleitor.
Não só, é importante lembrar também que conforme a própria história eleitoral demonstra, após assumirem seus cargos, os políticos tendencialmente se comportam de um modo muito diverso ao que se espera. E nem poderia ser diferente, afinal, muitas vezes, a política acaba sendo um jogo de poder e influência.
Nesse momento você leitor pode estar se perguntando: qual a relação disso tudo com DAOs e modelos de votação? E a resposta é muito simples: Apesar de DAOs serem sistemas descentralizados, essas organizações também passam por problemas similares, até mesmo envolvendo “jogo político”.
Enfim, entrando especificamente em modelos de votação de DAOs, o modelo mais conhecido e utilizado atualmente é o denominado “one token, one vote”. Modelo este que é, em alguma medida, similar ao modelo tradicional narrado, pois se trata de um sistema mais simples de se entender e implementar em governança de DAOs.
2.2 UM TOKEN, UM VOTO
Como seu próprio nome elucida, trata-se de um modelo em que cada um dos tokens de governança daquela organização representa um voto no processo decisório - lembrando que quando falamos em tokens, podemos nos referir tanto à tokens fungíveis, por exemplo ETH e BANK, ou tokens não fungíveis, como os NFTs.
Não é necessária muita reflexão para extrair o maior problema desse modelo de voto: quanto mais tokens uma carteira possui, mais votos ela poderá exercer em uma votação e, consequentemente, maior o poder dela naquela votação. Por essa razão, muitas vezes quando se discute governança de DAOs, as pessoas não se mostram a favor de um sistema de voto relacionado exclusivamente a um token.
Isso porque, via de regra, o modelo “um token, um voto” privilegia as pessoas mais ricas, já que elas terão mais capital para adquirir uma maior quantia de tokens e, consequentemente, terão um maior poder de voto dentro da organização. Em última instância, pode-se dizer, inclusive, que nesse modelo as pessoas votam com seu dinheiro.
Esse modelo pode ser bastante problemático para uma DAO, já que cria o risco de que pessoas com mais dinheiro (e tokens) votem com a intenção de dar a si mesmo mais dinheiro. Por outro lado, muitos defensores desse sistema baseado em tokens argumentam ser justo que as pessoas com mais capital alocado em uma DAO tenham maior poder sobre ela, afinal essas seriam as melhores pessoas para defender os interesses daquela organização, já que elas possuem mais capital em risco.
Mas não só isso, o modelo “um token, um voto” também abre uma fragilidade relacionada à centralização. Basta que uma pessoa tenha dinheiro para que ela detenha uma grande influência naquela organização, podendo fazer isso em uma única carteira ou até mesmo em diversas carteiras para simular uma pluralidade de pessoas. Nesse modelo pode ocorrer, inclusive, situações em que uma pessoa com bastante capital adquire uma quantia significativa de tokens daquela organização e consegue tomar o poder da DAO todo para si, aprovando propostas em seu único e exclusivo benefício, em uma espécie de “tirania da maioria”.
Apesar de todas as fragilidades acima expostas, a Maker DAO, uma das mais antigas e renomadas DAOs existentes, utiliza, em parte, um modelo onde o poder de voto é ponderado pela quantidade de tokens MKR que uma carteira possui. Isso pode trazer sérios perigos à MakerDAO e à stablecoin DAI, que é emitida pelo próprio protocolo da Maker (entenda mais sobre a Maker DAO aqui).
Verdade é que em grande parte das votações de governança da MakerDAO verifica-se uma grande centralização de poder, com poucas carteiras controlando o processo decisório, segundo estudo realizado no artigo “Decentralization illusion in DeFi: Evidence from MakerDAO” [10].
O artigo analisou mais de 500 votações de governança da MakerDAO e concluiu, em resumo, que os votos dessas propostas são centralizados em um pequeno grupo e que o poder de voto também é distribuído de modo desigual entre as carteiras votantes. Se olharmos para a distribuição do token MKR, isso fica mais evidente:
2.3 QUADRATIC VOTING
Uma das pessoas que introduziu esse modelo de votação no ecossistema cripto foi Vitalik Buterin, um dos co-criadores do Ethereum, no texto “Quadratic Payments: A Primer”. Porém, a criação desse modelo é atribuída à Glen Weyl e Steven Lalley, que demonstraram a aplicação desse modelo nos sistemas tradicionais de votos no artigo “Quadratic Voting: How Mechanism Design Can Radicalize Democracy”.
Em resumo, o quadratic voting consiste em um modelo de votação onde os indivíduos pagam por quantos votos quiserem exercer, usando uma espécie de “créditos de voto” que evoluem de preço de forma quadrática. O objetivo principal desse modelo é permitir que um indivíduo (ou uma carteira) vote repetidamente em uma mesma opção para expressar sua vontade sobre o direcionamento daquela proposta.
Da mesma forma, diante da evolução quadrática de preço dos votos, esse sistema evita que grandes baleias consigam monopolizar a votação, já que, a cada voto o preço acaba se elevando - por exemplo, um voto demanda 1 token, dois votos demandam 4 tokens, três votos demandam 9 tokens. Nesse sentido, uma maioria de indivíduos votantes que pouco se importa com a proposta não ganhará de um grupo menor mas que acredita intensamente no assunto daquela votação.
A teoria por trás desse modelo é que a precificação quadrática dos votos acaba otimizando o bem estar social, uma vez que a avaliação de custo benefício de adquirir votos é diretamente relacionada à importância que o indivíduo/carteira atrela à proposta em votação.
Apesar dessas vantagens do quadratic voting, esse sistema também não é imune a problemas, e talvez o principal deles seja que o modelo não funciona bem em uma votação com múltiplas alternativas diferentes para se votar, afinal o voto vai ocorrer somente em uma das alternativas. Além disso, importante mencionar também que o quadratic voting funciona bem em ambientes em que a identidade dos usuários votantes é conhecida, já que isso evita a criação de várias carteiras anônimas para “fraudar” a votação, mas, por outro lado, essa exigência vai contra a privacidade, um pilar tão importante no universo cripto.
A partir da criação da ideia do Quadratic Voting, surgiram variações dessa ideia, como o Quadratic Funding e o Quadratic Attention Purchase. Um dos melhores exemplos de uso associado ao Quadratic Funding (que segue a mesma ideia do Quadratic Voting), atualmente é o Gitcoin. O Gitcoin é uma espécie de Grant DAO que usa esse modelo para decidir quais projetos financiar com os fundos da Ethereum Foundation. Basicamente, na plataforma, os usuários da comunidade podem “votar” em forma de doações aos projetos que eles apoiam e, por meio do modelo quadrático, o protocolo determina a quantia de grants que pode ser obtida pelo próprio Gitcoin.
De qualquer forma, apesar de ainda não ser um modelo perfeito, temos grandes nomes da indústria cripto apoiando esse modelo quadrático, como o próprio Vitalik, que defende o Quadratic Voting em detrimento a sistemas como o one token, one vote e até o one person, one vote.
2.4 OUTROS MODELOS
Outro modelo que merece menção é o Modelo Bicameral, introduzido pela solução de segunda camada Optimism, que criou uma espécie de divisão entre “Token House” e “Citizens’ House”, com funções e objetivos diferentes, mas que se cruzam em alguns tópicos específicos:
Para além de todos os modelos de governança de DAOs aqui mencionados, também temos, por exemplo, o modelo de votos delegados, só que esse modelo, muitas vezes, resulta em uma plutocracia. Temos também modelos de voto com peso, em que, por exemplo, quanto mais tempo uma carteira holda aqueles tokens de governança, maior o peso do seu voto, modelos envolvendo lock-up de tokens, dentre vários outros.
Fato é que o assunto “governança de DAOs” ainda é um dos mais emblemáticos quando falamos dessas novas organizações, até mesmo porque, como foi mencionado antes, cada organização possui suas próprias necessidades e, muitas vezes, criam suas próprias regras para se adaptarem a algum modelo de votação. Mas não só isso, o assunto “DAOs” por si só ainda é extremamente recente e está passando por sua fase de experimentação.
Como foi exposto, até mesmo a MakerDAO, uma das maiores organizações que temos atualmente no ecossistema, passa por problemas envolvendo sua governança, problemas estes que vão desde o modelo utilizado, o engajamento das pessoas nas votações e até mesmo a descentralização dos tokens. E isso é natural, afinal o ecossistema inteiro está em evolução e aprimoramento, há alguns anos, ninguém sequer conhecia o termo “DAO” e, aos poucos, essa situação vai mudando.
Claro que nesse processo evolutivo, muitos modelos de governança serão levados a teste, outros irão falhar, e isso é natural, até mesmo para que, cada vez mais, consigamos construir modelos mais robustos.
CONCLUSÃO
A revolução tecnológica do universo Web3 nos proporcionou muitas coisas e, agora, estamos na fase de sedimentação desses conhecimentos e projetos. O objetivo principal do projeto Revista de Direito Descentralizado é estudar até que ponto estamos seguros nesse ambiente e criar conteúdo jurídico sobre as principais inovações desse campo.
Até o exato momento, prover um conceito definitivo de Organização Autônoma Descentralizada se equipara a percorrer um deserto atrás de água. Nós sabemos que em algum lugar tem, mas acontece que está enterrada muito longe da superfície.
Nesse cenário, quando um solitário perdido no deserto vê uma vegetação verde, é hora de arregaçar as mangas e procurar a fonte. Nessa metáfora, essa Revista de Direito Descentralizado é o homem perdido cavando sem parar para encontrar a solução do seu problema; a sede. No nosso caso, é sede de conhecimento.
Por enquanto, sem qualquer dúvida temos que DAO é um grupo de pessoas, chamada de comunidade, dotadas de poder de decisão, ou não, e que se gerem autonomamente, voltadas para um objetivo comunitário em comum, que se organizam por meio de ferramentas tecnológicas automatizadas da Web3.
Nesse sentido, a descentralização permite a entrada de qualquer contribuidor na comunidade, mas não permite que todos tenham força de gestão. A sua autonomia não está presente somente na automatização de processos, mas na própria governança, já que inexiste uma força centralizadora que todos dependam.
Como foi visto"3, conclui-se, que nenhum modelo de governança até o momento é perfeito. Existem vários, o mais conhecido e utilizado hoje é a “one token, one vote”. Nesse modelo, qualquer pessoa que tenha comprado um token de governança tem poder de decisão em qualquer matéria levada à votação.
CITAÇÕES
[1] 3Ao contrário do que muitos acreditam, Blockchain não foi criada ao mesmo tempo que a criptomoeda Bitcoin. No século passado, a tecnologia de dados e a utilização de documentos digitais cresceu exponencialmente e, por isso, 1991 Stuart Haber e W. Scott Stornetta1 projetaram um sistema de armazenamento de dados em blocos conectados e protegidos criptograficamente. http://citeseerx.ist.psu.edu/viewdoc/download?doi=10.1.1.46.8740&rep=rep1&typ e=pdf (Acessado em julho de 2022)
[2] https://bitcoin.org/bitcoin.pdf (Acesso em agosto de 2022).
[3] https://blog.fundace.org.br/criptoeconomia-o-que-e/ (Acessado em agosto de 2022).
[4] Para saber mais: https://www.criptofacil.com/desenvolvedor-do-tornado-cash-tem-fianca-negada-e-seguira-preso-por-mais-90-dias/
[5] Sybil attacks consistem no uso de pseudônimos para violar a integridade de uma rede. Um exemplo prático, seria a utilização de diversos usuários por um indivíduo para fraudar uma votação, alterando o resultado natural.
[6] Ambas são falhas de mercado, o risco moral consiste na probabilidade de haver uma alteração de comportamento de um agente que leve ao descumprimento ou prejuízo à transação em curso. Em síntese, a seleção adversa corresponde a uma assimetria de informações entre vendedores e compradores e impede os compradores de realizarem melhores escolhas, resultando numa seleção incorreta dos bens e serviços.
[7] Em síntese apertada, o dilema de agência corresponde ao dilema enfrentado por empresas pelo risco de um agente adotar uma medida contrária aos interesses corporativos aos quais foram delegadas as tomadas de decisões.
[8] Vitalik Buterin. Indo além da governança do voto por moedas. https://vitalik.ca/general/2021/08/16/
[9] Samer Hassan Youssef El Faqir, Javier Arroyo. Uma visão geral das organizações autônomas descentralizadas em a cadeia de bloqueio. 16° Simpósio Internacional de Colaboração Aberta (OpenSym 2020), agosto de 2020.
[10] Sun, Xiaotong and Stasinakis, Charalampos. Decentralization illusion in DeFi: Evidence from MakerDAO (November 25, 2021). Disponível em: https://ssrn.com/abstract=3971791 http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3971791
REFERÊNCIAS
Website: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2003531 (Acessado em agosto de 2022).
Website: https://arxiv.org/pdf/1809.06421.pdf (Acessado em agosto de 2022).
Website:https://community.optimism.io/docs/governance/(Acessado em agosto de 2022).
Website: https://www.economist.com/christmas-specials/2021/12/18/the-mathematical-method-that-could-offer-a-fairer-way-to-vote (Acessado em agosto de 2022).
JENNINGS, Miles. KERR, David. A Legal Framework for DAOs. 2022.
MONDOB, Brian Sanya; Dr. ADAMI-JOHNSON, Sara; GREEN Matthew; DR. GEORGOPOULOS Aris. DAOs: The Future of Corporate Governance or an Illusion?. Jul, 2022.
PIECH, Stefan. The Rise of Decentralized Autonomous Organizations. Julho, 2022.
SLAVIN, Aiden; WERBACH, Kevin. Decentralized Autonomous Organization Beyond The Hype. Junho, 2022.
COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 30 ed. São Paulo: Saraiva. 2018.
LESSIG, Lawrence. Code and Other Laws of Cyberspace. 1999, Basic Books.
Spencer Wheatley Ke Wu e Didier Sornette. Classificação das moedas e fichas criptográficas pela dinâmica de suas capitalizações de mercado | sociedade real ciência aberta. Setembro de 2018.
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