Revista de Direito Descentralizado: Edição Livre
Um ensaio jurídico da dança de NFTs e Direito do Consumidor
IMPRESSÕES SOBRE O CASO DA PLATAFORMA DE NFTs DA PORSCHE- Parte 1
Guilda de Jurídico da BanklessBR & DLT360 Consulting
Prezada nação Bankless,
Assim como muitos entusiastas do ecossistema de criptoativos e criptomoedas fazem, este autor também acompanha, diariamente, discussões e notícias divulgadas pelo Twitter e em algumas comunidades da Plataforma Discord.
Nessa jornada diária, eis que este autor se deparou, nos últimos meses, com dois tweets sobre o “direito de arrependimento” nas compras de NFTs 1 mediante plataformas estrangeiras.
No direito brasileiro, o direito de arrependimento é regulado pelo artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor e pelo artigo 5º do Decreto nº 7.962/2013 sobre comércio eletrônico, que concedem o prazo de até 7 dias para que o consumidor, em compras à distância, possa desistir do contrato e devolver o produto, sem ônus, com reembolso do valor pago.
Ressalta-se que o direito de arrependimento também é previsto em leis de outros países e até em normas supranacionais, como no sistema de instrumentos jurídicos da União Europeia (v.g. as Diretivas 97/7/EC e 2002/65/CE, ambas do Parlamento Europeu e do Conselho) e, o prazo para o consumidor costuma ser, inclusive, maior do que 7 dias nestas legislações exógenas.
Mas, voltemos aos referidos tweets. O primeiro tweet que este autor destaca é o publicado pela conta oficial do Procon do Estado de São Paulo, entidade especializada na defesa dos consumidores desse Estado-membro. Perguntada se após compra de NFT, o consumidor tera o direito aos 7 dias de arrependimento, responde:
Posteriormente, eis que, em 26/01/2023, ao navegar pelo canal “pautas quentes” da comunidade “Bankless BR DAO”, este autor se surpreendeu com um post de @DeFinn (Lud), no qual citou um tweet do Fundador da Top Dog Studios, Paul Price (@dartkpOrt), de 25/01/2023, concernente a uma caixa de seleção da plataforma de NFTs (Tokens Não Fungíveis) da Porsche2, in verbis:
Tudo começa com esta caixa de seleção: ‘Concordo com a prestação imediata do serviço contratual (ou seja, recebimento do NFT) e fui informado que perco o direito de cancelamento’. Isso foi cuidadosamente redigido por uma equipe jurídica. Mas o que isso significa? (Tradução livre)
Ou seja, trata-se de cláusula contratual que, ao ser selecionada, resultaria na renúncia ao direito de cancelar a compra do NFT após sua aquisição.
Além disso, a plataforma de cunhagem de NFTs da Porsche cita o termo “withdrawal” com um hiperlink que leva a outra página, a qual revela que a referida renúncia se refere, mais especificamente, ao direito de arrependimento dos consumidores e que, segundo o próprio texto da página, com fundamento na Seção 13, do Código Civil Alemão, esse direito poderia ser exercido sem a necessidade de se justificar o motivo e por um período de até 14 dias após a conclusão do contrato.
Ademais, o mencionado texto da página sobre withdrawal também explica que o exercício do direito de arrependimento ocasionaria o reembolso, mediante o mesmo meio de pagamento usado para a aquisição, de todos os pagamentos efetuados pelo comprador, inclusive custos de entrega e sem resultar em qualquer taxa extra ao consumidor3.
Por fim, o mesmo texto da citada página menciona três situações nas quais o consumidor não poderia exercer o direito de arrependimento:
a) Se o contrato envolver a prestação de um serviço pela contratada e esta o prestar por completo.
b) Se o contrato envolver a prestação de um serviço e a contratada apenas iniciou o serviço, mas com o expresso consentimento do contratado e a expressa ciência deste de que não terá direito ao arrependimento quando o serviço for completamente prestado.
c) Se o contrato envolver o fornecimento de conteúdo exclusivamente digital e se a contratada iniciou a execução do contrato e o contratante consentiu, expressamente, dentro do prazo de 14 dias da contratação, tanto com o início da execução, quanto com a renúncia ao direito de arrependimento.
Assevero que, no caso em exame, ao consultar a já citada plataforma de NFTs da Porsche, constatei que, sem a seleção da mencionada cláusula de renúncia, não seria possível comprar o respectivo Token Não Fungível.
Desse modo, a referida cláusula se configura, também, como cláusula de contrato de adesão, uma vez que o comprador não teria a opção de modificá-la ou de aderir ao contrato sem a prévia renúncia ao direito de arrependimento.
Pois bem. O tema evidencia três incertezas preliminares:
a) Será que a jurisdição brasileira poderia julgar demanda proposta por comprador, residente ou domiciliado no Brasil, em face de uma plataforma estrangeira de comércio de NFTs?
b) Sendo positiva a resposta à questão acima, qual direito material nacional deve ser aplicado para a solução do caso: o brasileiro ou o estrangeiro?
c) Haveria alguma solução tecnológica para suplantar a dificuldade prática de se garantir a eficácia de eventual direito de arrependimento, com reembolso, inclusive nas plataformas de Dapps para DeFi4?
Assim, este autor se sentiu motivado a pesquisar o tema para buscar respostas, às supracitadas questões, sob a perspectiva da parte contratante (comprador) residente ou domiciliada no Brasil.
Pela expressiva extensão e complexidade da pesquisa, esta foi dividida em duas etapas. A primeira etapa é objeto do tema deste artigo e está delimitada a buscar responder a primeira questão-problema apresentada, qual seja: será que a jurisdição brasileira poderia julgar demanda proposta por comprador, residente ou domiciliado no Brasil, em face de uma plataforma estrangeira de comércio de NFTs?
Esta primeira fase é essencial para se responder a segunda questão-problema supracitada, uma vez que, não haveria utilidade prática em apenas examinar primeiramente qual seria o direito material aplicável se a jurisdição brasileira não pudesse nem ao menos julgar a causa.
Assim, já deixando o leitor ou a leitora a par do que virá no segundo artigo, este autor adianta que será feita investigação exegética com fundamento na Constituição Federal de 1988 e em regras de conexão infraconstitucionais, estas sob os fundamentos do Direito Internacional Privado, para solucionar os conflitos entre sistemas de direito material nacionais, com o objetivo de se identificar se seria aplicado o direito material brasileiro ou o estrangeiro à relação contratual em análise e, no caso de ser o brasileiro, se incidiria ou não o Código de Defesa do Consumidor.
Também, na segunda fase da pesquisa e, para as hipóteses de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, serão exploradas as viabilidades jurídicas e técnicas do direito de arrependimento, principalmente quanto ao reembolso integral dos valores desembolsados pelo consumidor de NFTs, adquiridos mediante compra internacional, especialmente quanto aos seguintes aspectos:
a) Incidência ou não do direito de arrependimento às compras internacionais de NFTs, por consumidores residentes ou domiciliados no Brasil, ainda que se aplique o Código de Defesa do Consumidor, em decorrência das complexidades e peculiaridades desses ativos digitais e seus negócios jurídicos respectivos.
b) Caso se entenda pela incidência do direito de arrependimento, se o direito de reembolso seria aplicável em sua integralidade, inclusive com a devolução dos custos da transação (v.g. a taxa de gas da rede Ethereum) e, em face de eventual inviabilidade técnica ou mera negativa de reembolso, se os responsáveis poderiam ser condenados a reparar os danos materiais e até morais sofridos pelo consumidor.
c) Plataformas de NFTs meramente intermediadoras, tais como marketplaces, teriam responsabilidade, nos termos do Código de Defesa do Consumidor, perante eventuais danos alegados por seus consumidores residentes ou domiciliados no Brasil?
d) Quanto às viabilidades técnicas, haveria alguma resposta tecnológica para se garantir o direito de arrependimento, com reembolso, via blockchain, inclusive para plataformas de aplicativos descentralizados para DeFi?
Após essas explicações iniciais, os resultados da primeira fase da pesquisa serão apresentados abaixo, com as respectivas propostas de respostas à primeira questão-problema concernente à jurisdição brasileira para as causas decorrentes da relação jurídica em exame.
Este autor ressalta que, este estudo não tem a pretensão de esgotar o assunto, mas certamente intenta provocar a discussão do tema perante a complexidade intrínseca do ecossistema cripto, com suas incontáveis possibilidades de uso e modelos de negócio.
Boa leitura!
1. DOS PRESSUPOSTOS PARA O EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA QUANTO ÀS CAUSAS ENTRE COMPRADOR, RESIDENTE OU DOMICILIADO NO BRASIL, EM FACE DE PLATAFORMA ESTRANGEIRA DE NFTs
Conforme já asseverado acima, antes de se intentar discutir a solução do eventual conflito internacional entre direito material estrangeiro e direito material brasileiro, faz-se necessário primeiramente averiguar se a jurisdição brasileira poderia julgar a hipotética lide entre um comprador de NFTs, residente ou domiciliado no Brasil, em face de uma plataforma estrangeira.
Ressalta-se que, nos termos do artigo 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”. Trata-se do direito fundamental à inafastabilidade da jurisdição.
Ademais, o parágrafo § 1º, do mesmo artigo 5º da Constituição, dispõe que: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.”
O Código de Processo Civil, por sua vez, estabelece no artigo 13 que “a jurisdição civil será regida pelas normas processuais brasileiras, ressalvadas as disposições específicas previstas em tratados, convenções ou acordos internacionais de que o Brasil seja parte.”
No que concerne aos limites da jurisdição nacional, a matéria é tratada nos artigos 21 ao 25 do Código de Processo Civil.
Assim, o tópico central deste artigo, dividido em subtópicos para melhor sistematizar a complexidade do assunto, tratará da identificação das regras gerais e excepcionais que determinarão o exercício ou não da jurisdição brasileira.
1.1. A regra geral do domicílio no Brasil, prevista no artigo 21, inciso I e parágrafo único, do Código de Processo Civil Brasileiro, e sua necessária interpretação sistemática com o inciso II, do artigo 22 do mesmo Código
Levando-se em conta a contextualização do problema posto, qual seja, a compra internacional de NFTs efetivada por residente ou domiciliado no Brasil, mediante plataforma estrangeira, destaca-se, inicialmente, o teor do artigo 21, inciso I e parágrafo único, do CPC:
Art. 21. Compete à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações em que:
I - o réu, qualquer que seja a sua nacionalidade, estiver domiciliado no Brasil;
[...].
Parágrafo único. Para o fim do disposto no inciso I, considera-se domiciliada no Brasil a pessoa jurídica estrangeira que nele tiver agência, filial ou sucursal.
(Grifado)
Desse modo, nos termos do artigo 21, inciso I, combinado com o parágrafo único, do CPC, constata-se que a primeira regra geral para delimitar se a jurisdição brasileira poderá julgar causa sobre contrato internacional de compra de NFTs, é verificar se o réu, no caso em exame, a plataforma estrangeira de NFTs, tem ou não domicílio no Brasil e, para tanto, equipara-se ao domicílio a existência de agência, filial ou sucursal no nosso país.
Ou seja, pela regra geral, seria necessário, quanto à plataforma de NFTs da Porsche, averiguar se esta tem o referido domicílio no Brasil.
Ocorre que, este enunciado normativo não pode ser interpretado isoladamente, pois há uma exceção especial que precisa ser considerada antes de se falar na exigência disposta no citado inciso I e parágrafo único, do artigo 21 do CPC.
E é por isso que este autor não concorda com o citado tweet do Procon do Estado de São Paulo, no qual a entidade asseverou que a representação no Brasil seria um requisito essencial para se reivindicar o direito de arrependimento em nossa Jurisdição para causas consumeristas.
Ocorre que o próprio CPC apresenta exceção à exigência de representação no Brasil e esta é exatamente quanto às relações de consumo.
Nesse sentido, o artigo 22, inciso II, do CPC, dispõe:
Art. 22. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações:
[...]
II - decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil;
[...]
(Grifado)
No que tange aos conceitos e diferenças entre os termos “residência” e “domicílio”, destacam-se os artigos 70 ao 74 do Código Civil Brasileiro, [15] nestes termos:
Art. 70. O domicílio da pessoa natural é o lugar onde ela estabelece a sua residência com ânimo definitivo.
Art. 71. Se, porém, a pessoa natural tiver diversas residências, onde, alternadamente, viva, considerar-se-á domicílio seu qualquer delas.
Art. 72. É também domicílio da pessoa natural, quanto às relações concernentes à profissão, o lugar onde esta é exercida.
Parágrafo único. Se a pessoa exercitar profissão em lugares diversos, cada um deles constituirá domicílio para as relações que lhe corresponderem.
Art. 73. Ter-se-á por domicílio da pessoa natural, que não tenha residência habitual, o lugar onde for encontrada.
Art. 74. Muda-se o domicílio, transferindo a residência, com a intenção manifesta de o mudar.
Parágrafo único. A prova da intenção resultará do que declarar a pessoa às municipalidades dos lugares, que deixa, e para onde vai, ou, se tais declarações não fizer, da própria mudança, com as circunstâncias que a acompanharem.
Em relação ao supracitado inciso II, do artigo 22 do CPC, trata-se de dispositivo que está em consonância com a defesa do consumidor pelo Estado Brasileiro, nos termos dos artigos 5º, inciso XXXII, e 170, inciso V, da CF/88 e com o princípio da proteção à vulnerabilidade dos consumidores, previsto no artigo 4º, inciso I, do Código de Defesa do Consumidor.
Da simples leitura do Capítulo I, do Título II do CPC, constata-se que o citado inciso II, do artigo 22, não pressupõe ou exige, como condição cumulativa, que a pessoa jurídica estrangeira tenha domicílio no Brasil.
Ademais, sabe-se que a utilização isolada de dispositivos normativos, para equivocadamente buscar a solução de um problema jurídico sem considerar o completo sistema ou subsistema que permeia o enunciado legal, levaria à interpretação equivocada, destoada do processo hermenêutico sistemático demandado pela precisão da ciência do direito.
Sobre o processo sistemático de interpretação, esclarece Carlos Maximiliano5:
Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto.
Por umas normas se conhece o espírito das outras. Procura-se conciliar as palavras antecedentes com as consequentes, e do exame das regras em conjunto deduzir o sentido de cada uma.
Por conseguinte, ainda que a Porsche, ou outra pessoa jurídica estrangeira que ofertasse NFTs, não tivesse representação (domicílio) no Brasil, se a relação jurídica internacional fosse de consumo e o consumidor fosse residente ou domiciliado em nosso país, a jurisdição brasileira poderia julgar a causa.
No que tange à qualificação da relação de consumo, sua configuração deve preencher os requisitos previstos nos artigos 2º e 3º da Lei 8.078/90:
Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.
Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.
§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.
(Grifado)
Assevera-se que, não há que se recorrer ao direito material estrangeiro para a qualificação da relação jurídica como de consumo, pois tal qualificação deve ser extraída do Código de Defesa do Consumidor (CDC), de competência legislativa da União, com fulcro nos artigos 5º, inciso XXXII e §1º; 22, inciso VIII; 24, inciso VIII e § 1º, ambos da CF/88, combinado com o artigo 48 do ADCT.
Além disso, por se tratar de direito fundamental e, também, direito humano, a proteção ao consumidor deve prevalecer e ser observada nas relações internacionais, nos termos do artigo 4º, inciso II, da CF/88:
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
[...]
II - prevalência dos direitos humanos;
(Grifado)
Assim, a proteção aos direitos do consumidor, nas relações internacionais, torna-se uma das garantias à dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
[...]
Nesse sentido, no que concerne à necessidade de aplicação do CDC para se constatar a configuração ou não de uma relação internacional de consumo, além da fundamentação desta aplicação com fulcro nas normas constitucionais supracitadas, cita-se o teor do artigo 17 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro:
Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
(Grifado)
No que concerne ao conceito de “ordem pública”, André Ramos Tavares esclarece6:
Quanto à vinculação, dividem-se as leis em cogentes e dispositivas, conforme esteja ou não seu cumprimento ao arbítrio dos particulares. As primeiras, também denominadas imperativas, são as chamadas “normas de ordem pública”. São relativas ao Direito de Família, do Trabalho, do Consumidor, parte dos direitos obrigacionais, dentre outras. Têm o caráter da indisponibilidade em virtude de tutelar um interesse público.
(Grifado)
Ademais, destaca-se também os artigos 4º e 314 do Código de Bustamante, in verbis:
Artículo 4. Los preceptos constitucionales son de orden público internacional.[...]
Artículo 314. La ley de cada Estado contratante determina la competencia de los Tribunales, así como su organización, las formas de enjuiciamiento y de ejecución de las sentencias y los recursos contra sus decisiones.
(Grifado)
O Código de Bustamante, também conhecido por Convenção de Direito Internacional Privado de Havana ou Código de Direito Internacional Privado, foi ratificado pelo Brasil, sendo que a sua promulgação foi efetivada por meio do Decreto nº 18.871/1929.
Além do Brasil, de acordo com informações do website oficial da Organização dos Estados Americanos, os seguintes países também assinaram e ratificaram o Código de Bustamante: Argentina, Bahamas, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, República Dominicana, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Nicaragua, Panama, Estados Unidos da América, Uruguai e Venezuela. [22]
Em que pese o Código de Bustamante ser aplicado apenas aos supracitados signatários, serve como vetor interpretativo para contratos internacionais envolvendo partes originárias de outros países, pois atesta a hierarquia das normas constitucionais, no caso, a proteção do consumidor, superior a eventuais normas estrangeiras que venham a contrariar os preceitos protetivos brasileiros.
Por sua importância, cita-se também o conteúdo do artigo 7º, inciso XIII, do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), mais um fundamento para se utilizar do Código de Defesa do Consumidor, quanto à caracterização ou não de relação de consumo para se alcançar a finalidade do artigo 22, inciso II, do CPC:
Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
[...]
XIII - aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet.
(Grifado)
E, enfatizando-se a aplicação do Código de Defesa do Consumidor para o âmbito do mercado de ativos virtuais (v.g. NFTs), cita-se o artigo 13 da Lei nº 14.478/2022 (Lei da Prestação de Serviços de Ativos Virtuais):
Art. 13. Aplicam-se às operações conduzidas no mercado de ativos virtuais, no que couber, as disposições da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor).
(Grifado)
Assevera-se que, é necessário o esclarecimento quanto a um aspecto prático: o fundamento da relação de consumo (artigo 22, inciso II, do CPC), utilizada com o objetivo de se afastar a exigência de representação da pessoa jurídica estrangeira no Brasil para definição de sua jurisdição, só será útil se a referida pessoa jurídica realmente não tiver domicílio no nosso país.
Se porventura a plataforma estrangeira de NFTs conta com domicílio em nosso território nacional, a constatação de relação de consumo só será importante para se identificar a aplicação ou não do Código de Defesa do Consumidor, incluindo-se o direito de arrependimento, mas não mais para se definir a jurisdição, pois esta já estaria determinada pela regra do artigo 21, inciso I e parágrafo único, do CPC.
E, como este autor já ressaltou, a análise mais específica sobre qual seria o direito material aplicável, inclusive quanto ao direito de arrependimento previsto na Lei nº 8.078/1990, será objeto da segunda etapa da pesquisa, cujos resultados serão publicados em próximo artigo.
Assim, em termos práticos, sendo o caso de uma plataforma estrangeira sem representação no Brasil, o artigo 22, inciso II, do CPC, torna-se extremamente útil para que eventual consumidor, residente ou domiciliado neste país, possa propor a demanda em nossa jurisdição nacional.
Após a análise quanto ao critério especial da relação de consumo, faz-se necessário examinar hipóteses nas quais não haveria a referida relação e, assim, identificar os critérios para se concluir pela manutenção ou não da jurisdição brasileira quanto ao julgamento da causa internacional, conforme se passará a expor nos subtópicos seguintes.
1.2. Da inexistência de relação de consumo quando o comprador, residente ou domiciliado no Brasil, exercer atividade reiterada e profissional de revenda de NFTs
Pois bem. A particularidade descrita no título deste tópico poderá até ser identificada nos próprios marketplaces estrangeiros especializados em NFTs. Uma vez identificada, estará afastada a incidência do Código de Defesa do Consumidor, pois o comprador deixaria de ser destinatário final do produto.
Neste caso, a jurisdição brasileira só poderia julgar a causa internacional se, inicialmente, nos termos do já citado artigo 21, inciso I, cumulado com o parágrafo único, do CPC, a pessoa jurídica ré tivesse domicílio no Brasil. E neste caso, assevera-se que, obviamente, não seria aplicado o Código de Defesa do Consumidor para solucionar eventual litígio entre as partes contratantes.
Inexistindo o referido domicílio da ré, outra possibilidade seria se, conforme o disposto nos incisos II e III do artigo 21 do CPC, no Brasil tiver de ser cumprida a obrigação ou o fundamento seja fato ocorrido ou ato praticado no Brasil, para as quais, por enquanto, este autor não conseguiu vislumbrar casos hipotéticos, uma vez que o tema da pesquisa trata de compra internacional feita por comerciante de NFTs residente ou domiciliado no Brasil.
E ainda que as hipóteses acima não se aplicassem ao caso, haveria uma última possibilidade para se manter a jurisdição brasileira, qual seja: se o contrato estrangeiro estabelecer que eventual litígio será submetido à jurisdição brasileira, conforme está disposto no artigo 22, inciso III, do CPC.
No entanto, há que se examinar com cuidado o afastamento da regra do artigo 22, inciso II, do CPC. Perceba que este autor, no primeiro parágrafo, asseverou que haveria a necessidade de se identificar a exceção, qual seja, de que o comprador exerce atividade de comércio de NFTs. Ocorre que, na prática processual, quem busca alegar fato impeditivo do direito do autor é o réu!
Isso porque, nos termos do artigo 373, inciso II, do Código de Processo Civil, o ônus da prova, quanto à afirmação da ausência de relação de consumo, é de quem sustenta a alegação de que o comprador, residente ou domiciliado no Brasil, não seria o destinatário final do NFT, sob o argumento de que exerceria suposta atividade, reiterada e profissional, de revenda desses ativos digitais:
Art. 373. O ônus da prova incumbe:
[...]
II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
(Grifado)
Destaca-se que, para se constatar se o comprador não é destinatário final da compra, por ser um comerciante de NFTs, se a plataforma de NFTs, ré no hipotético processo, aplicar adequadamente as boas práticas referentes ao compliance, especialmente as políticas de KYC (Know Your Customer – Conheça o Seu Cliente), haverá maior possibilidade de se comprovar as circunstâncias de exceção à aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Contudo, ainda assim não será tão simples, pois o comprador tem o direito de tentar comprovar que, para aquela compra em particular, o NFT não seria para a revenda, mas, por exemplo, para sua coleção pessoal e, portanto, seria destinatário final do ativo.
Portanto, este autor prevê as seguintes hipóteses quanto ao tema deste subtópico:
a) O réu estrangeiro tem domicílio (representação) no Brasil: mesmo não sendo relação de consumo, a jurisdição brasileira poderá julgar a causa, obviamente discutindo-se outras normas jurídicas não consumeristas quanto ao direito material.
b) O réu estrangeiro não tem representação no Brasil, o demandante reconhece que a relação não é de consumo, mas propõe a ação sob o fundamento de uma das hipóteses previstas nos incisos II e III do artigo 21 do CPC, ou no inciso III do artigo 22, do mesmo Código, para reivindicar a aplicação de regras não consumeristas (reparação de prejuízos fundamentada no direito civil ou empresarial, por exemplo).
c) A pessoa jurídica não tem representação no Brasil, mas o demandante propõe a ação, em face da pessoa jurídica estrangeira, sob o argumento de se tratar de relação de consumo. Neste caso, caberia à pessoa jurídica estrangeira, ré no processo, comprovar que o autor não seria o destinatário final do NFT e, assim, requerer a extinção do processo sem julgamento de mérito, nos termos do artigo 17 do CPC (ausência de interesse de agir), cumulado com o artigo 485, incisos IV e VI do mesmo Código.
1.3. Do comprador, residente ou domiciliado no Brasil, investidor de NFTs
Por outro lado, e se for constatado que o comprador, residente ou domiciliado no Brasil, adquire NFTs como forma de investimento?
Pois bem. Se for comprovado que o adquirente exerce atividade de investimento em NFTs, este autor entende que seria afastada a incidência do Código de Defesa do Consumidor, mas desde que seja um investidor profissional ou qualificado, pelas regras da CVM, aplicadas por analogia, com fulcro no artigo 4º da LINDB.
Assim, afastando-se a relação de consumo, a causa só poderia ser julgada pela jurisdição brasileira se, nos termos do artigo 21, inciso I e parágrafo único, do CPC, a pessoa jurídica estrangeira tivesse representação no Brasil.
Não existindo a representação, também seria possível, conforme asseverado no subtópico anterior, que a jurisdição brasileira julgasse a causa se ocorresse uma das hipóteses previstas no incisos II e III, do artigo 21, ou inciso III do artigo 22, ambos do CPC, em que pese os incisos II e III, do artigo 21, serem difíceis de ocorrer.
E quanto ao fundamento de se afastar a configuração da relação de consumo à hipótese em exame, cita-se o teor dos artigos 11 e 12, da Resolução CVM nº30/2021, com as alterações inseridas pela Resolução CVM nº 162/2022, uma vez que relaciona os requisitos para se classificar um investidor como profissional ou qualificado:
Art. 11. São considerados investidores profissionais: I – instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil; II – companhias seguradoras e sociedades de capitalização; III – entidades abertas e fechadas de previdência complementar; IV – pessoas naturais ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais) e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição de investidor profissional mediante termo próprio, de acordo com o Anexo A; V – fundos de investimento; VI – clubes de investimento, desde que tenham a carteira gerida por administrador de carteira de valores mobiliários autorizado pela CVM; VII – agentes autônomos de investimento, administradores de carteira de valores mobiliários, analistas de valores mobiliários e consultores de valores mobiliários autorizados pela CVM, em relação a seus recursos próprios; VIII – investidores não residentes; e IX – fundos patrimoniais. Art. 12. São considerados investidores qualificados: I – investidores profissionais; II – pessoas naturais ou jurídicas que possuam investimentos financeiros em valor superior a R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais) e que, adicionalmente, atestem por escrito sua condição de investidor qualificado mediante termo próprio, de acordo com o Anexo B; III – as pessoas naturais que tenham sido aprovadas em exames de qualificação técnica ou possuam certificações aprovadas pela CVM como requisitos para o registro de agentes autônomos de investimento, administradores de carteira de valores mobiliários, analistas de valores mobiliários e consultores devalores mobiliários, em relação a seus recursos próprios; e IV – clubes de investimento, desde que tenham a carteira gerida por um ou mais cotistas, que sejam investidores qualificados. (Grifado)
Assim, com fundamento nos artigos supracitados, seria possível aferir, no caso concreto, se o comprador do NFT é ou não um investidor profissional ou qualificado para, só então, se rechaçar os critérios que caracterizam a relação de consumo.
Em sentido análogo, cito a Súmula nº 184 do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, que trata da aquisição de imóveis para investimento e que exige, para se afastar a aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que o adquirente seja investidor profissional do mercado mobiliário:
Súmula 184: O fato de o promitente comprador adquirir o imóvel em incorporação imobiliária para fins de investimento não afasta a aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor, ressalvada a hipótese do adquirente ser investidor profissional do mercado imobiliário.
(Grifado)
Ressalta-se também, conforme já asseverado na hipótese de comprador comerciante, que se a plataforma de NFTs aplica adequadamente as boas práticas referentes ao compliance, especialmente as políticas de KYC (Know Your Client – Conheça o Seu Cliente), terá maior possibilidade de comprovar se o comprador é ou não investidor profissional ou qualificado.
Essa discussão sobre investimento levanta outra importante dúvida. E se os NFTs apresentarem características de Security Token, ou seja, valores mobiliários, nos termos do Parecer de Orientação CVM nº 40/2022? Neste caso, só por este motivo se afastaria a relação de consumo?
Para elucidar o tema, cito trechos do mencionado Parecer nº 40/2022 da CVM que destacam quais seriam os requisitos para que um token de blockchain seja considerado valor mobiliário:
(iii) Token referenciado a Ativo (asset-backed token): representa um ou mais ativos, tangíveis ou intangíveis. São exemplos os “security tokens”, as stablecoins 11 , os non-fungible tokens (NFTs) e os demais ativos objeto de operações de “tokenização”.
As categorias citadas acima não são exclusivas ou estanques, de modo que um único criptoativo pode se enquadrar em uma ou mais categorias, a depender das funções que desempenha e dos direitos a ele associados.
A CVM entende que o token referenciado a ativo pode ou não ser um valor mobiliário e que sua caracterização como tal dependerá da essência econômica dos direitos conferidos a seus titulares, bem como poderá depender da função que assuma ao longo do desempenho do projeto a ele relacionado.
[...]
Ainda que os criptoativos não estejam expressamente incluídos entre os valores mobiliários citados nos incisos do art. 2º da Lei nº 6.385/76, os agentes de mercado devem analisar as características de cada criptoativo com o objetivo de determinar se é valor mobiliário, o que ocorre quando:
(i) é a representação digital de algum dos valores mobiliários previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da Lei nº 6.385/76 e/ou previstos na Lei nº 14.430/2022 (i.e., certificados de recebíveis em geral); ou
(ii) enquadra-se no conceito aberto de valor mobiliário do inciso IX do art. 2º da Lei nº 6.385/76, na medida em que seja contrato de investimento coletivo.
(Grifado)
Este autor entende que, pelo simples fato mencionado, não se poderia afastar a aplicação do conceito de relação de consumo da Lei nº 8.078/1990, mesmo que o NFT preencha as características de valor mobiliário, pois só não haveria relação de consumo sob os mesmos fundamentos já externados, ou seja, se o comprador de Security Tokens preenchesse os requisitos de investidor profissional ou qualificado!
Por outro lado, poderia se sustentar, apressadamente, que há entendimento recente do Superior Tribunal de Justiça, bem como enunciado doutrinário do Conselho da Justiça Federal, que seriam suficientes para se afastar a relação de consumo quando se tratar da compra de Security Tokens.
Para elucidar a temática, cita-se o teor do julgado do STJ em comento, bem como Enunciado da I Jornada de Direito Comercial, do Conselho da Justiça Federal, relacionado à discussão:
RECURSOS ESPECIAIS. DIREITO CIVIL E EMPRESARIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. DIVIDENDOS. INVESTIDOR. ACIONISTA MINORITÁRIO. SUCESSORES. SOCIEDADE ANÔNIMA DE CAPITAL ABERTO. MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS. AÇÕES NEGOCIADAS. RELAÇÃO EMPRESARIAL. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. NÃO INCIDÊNCIA. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. INVIABILIDADE. 1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e 3/STJ). 2. Cinge-se a controvérsia a perquirir se incidentes na relação entre o investidor acionista e a sociedade anônima as regras protetivas do direito do consumidor a ensejar, em consequência, a inversão do ônus da prova do pagamento de dividendos pleiteado na via judicial. 3. Não é possível identificar na atividade de aquisição de ações nenhuma prestação de serviço por parte da instituição financeira, mas, sim, relação de cunho puramente societário e empresarial. 4. A não adequação aos conceitos legais de consumidor e fornecedor descaracteriza a relação jurídica de consumo, afastando-a, portanto, do âmbito de aplicação do Código de Defesa do Consumidor. 5. Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor às relações entre acionistas investidores e a sociedade anônima de capital aberto com ações negociadas no mercado de valores mobiliários. 6. Recurso especial de ITAÚ UNIBANCO S.A. provido a fim de julgar integralmente improcedentes os pedidos iniciais. Recurso especial de DIAIR REMONDI BORDON e outros não provido. Embargos de declaração de DIAIR REMONDI BORDON e outros rejeitados.(REsp n. 1.685.098/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, relator para acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 10/3/2020, DJe de 7/5/2020.) Enunciado nº 19 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal: Não se aplica o Código de Defesa do Consumidor às relações entre sócios/acionistas ou entre eles e a sociedade.
Ocorre que a relação jurídica do comprador de Security Tokens com as plataformas estrangeiras não se confunde com a relação societária entre uma sociedade anônima e seus próprios sócios, não sendo aplicáveis, portanto, os supracitados entendimentos do STJ e do Enunciado nº 19 da I Jornada de Direito Comercial do CJF.
Por fim, assevera-se novamente que, quanto ao ônus da prova de que o comprador, residente ou domiciliado no Brasil, seria um investidor profissional ou qualificado, também se aplica o disposto no artigo 373, inciso II, do Código de Processo Civil.
Assim, se porventura for constatada a circunstância que a afastaria a relação consumerista, restaria verificar se ao menos um dos demais requisitos do artigo 21, incisos I, II e III, ou do inciso III, do artigo 22, ambos do CPC, esteja presente, sob pena de extinção do processo sem julgamento de mérito, nos termos do artigo 17 do CPC (ausência de interesse de agir), cumulado com o artigo 485, incisos IV e VI do mesmo Código.
1.4. Da compra internacional de NFTs, mediante a Plataforma da Porsche, efetuada por comprador residente ou domiciliado no Brasil
Conforme já demonstrado, se for constatada, no caso concreto, os elementos da relação de consumo na compra internacional de NFTs por residente ou domiciliado no Brasil, não seria necessária a exigência de representação da pessoa jurídica estrangeira no nosso país para se definir a jurisdição brasileira.
Assevera-se que, no caso de inexistência de representação no Brasil, será necessária a citação da pessoa jurídica estrangeira por carta rogatória (artigo 237, II, do CPC), procedimento que afastaria, por sua complexidade, a competência dos Juizados Especiais Cíveis, que contam com procedimento mais célere e sem condenação em honorários de sucumbência em sentença de primeiro grau, por eventual improcedência, nos termos do artigo 55 da Lei nº 9.099/95 [29].
O afastamento da citada competência dos Juizados Especiais respalda-se no teor do artigo 51, inciso II, da Lei nº 9.099/95. Nesse sentido, segue julgado do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina:
RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ACIDENTE DE TRÂNSITO. EXTINÇÃO DA AÇÃO DIANTE DA ILEGITIMIDADE PASSIVA DA SEGURADORA. IRRESIGNAÇÃO DO AUTOR. PRELIMINAR DE NULIDADE DE CITAÇÃO ARGUIDA EM CONTRARRAZÕES. ACOLHIMENTO. SENTENÇA CASSADA. EMPRESA ESTRANGEIRA. NECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DE CARTA ROGATÓRIA. INCOMPATIBILIDADE COM O RITO DOS JUÍZADOS ESPECIAIS. EXTINÇAO DO PROCESSO. ARTIGO 51, II DA LEI 9.099/95. RECURSO PREJUDICADO. (TJSC, PROCEDIMENTO DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL n. 5004624-76.2019.8.24.0008, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Vitoraldo Bridi, Segunda Turma Recursal - Florianópolis (Capital), j. 16-03-2021).
Após estes esclarecimentos, passa-se à exploração de maiores detalhes sobre o caso da Plataforma de NFTs da Porsche.
Primeiramente, este autor entendeu ser importante verificar se os atos praticados pela Plataforma de NFTs, da Porsche, podem ser, diretamente ou pela teoria da aparência, atribuídos também à própria Porsche.
A resposta ao questionamento acima será muito importante para se identificar qual pessoa jurídica poderá ser ré em uma eventual demanda, a ser proposta por consumidor residente ou domiciliado no Brasil, conforme se verá.
Pois bem. Segundo informações que podem ser extraídas do próprio website da plataforma de NFTs da Porsche, inicialmente destaca-se que o projeto seria resultante de uma parceria entre a Porsche e a Road2dreams GmbH [30]:
A Road2dreams e a Porsche colaboram para iniciar a jornada rumo à Web3. Uma jornada para um novo mundo onde as recompensas são reais e especiais para você. (tradução livre)
Ademais, a Porsche, em seu próprio website, fez anúncio quanto ao lançamento da sua coleção de NFTs [31]:
Como comprar um Porsche NFT. 7.500 Porsche NFTs. Três estradas. Um 911 icônico. A jornada começa. Junte-se à Porsche enquanto ela entra no mundo da Web3. Levando os sonhos para o próximo nível, o projeto ousado que é dedicado à cocriação e à comunidade vai misturar os mundos físico e digital. Prepare-se para a chance de possuir um 911. Em uma missão para unir pioneiros em um mundo virtual, a Porsche está lançando sua jornada Web3 com uma coleção NFT exclusiva de 7.500 peças. Uma que oferece aos proprietários a chance de ajudar a moldar sua própria arte digital, o projeto é um começo ousado para uma comunidade exclusiva da Porsche, o PIONΞERS CIRCLE. A apresentação do primeiro token não fungível (NFT) PORSCHΞ ocorreu no evento Art Basel de Miami, onde conceitos inovadores de colecionáveis digitais foram apresentados ao mundo. (Tradução livre)
E, no mesmo website citado, na página sobre os dados legais da Porsche, consta que o fornecedor dos serviços e produtos é a Dr. Ing. h.c. F. Porsche AG :
Além disso, no website da Plataforma de cunhagem de NFTs da Porsche [33], na página das Licenças FOSS (Licenças de Software Livre e de Código Aberto), encontra-se as seguintes informações:
[...]
The license terms listed below form the contractual basis for your use of the corresponding software components and supersede any other contractual agreements concerning this Porsche product, solution or service [...]
[...]
This provision takes precedence over any other contractual provision between you and Porsche or your Porsche Dealer.
[...]
Project: NFT Platform - OSO-1421
[...] Os termos de licença listados abaixo formam a base contratual para o uso dos componentes de software correspondentes e substituem quaisquer outros acordos contratuais relativos a este produto, solução ou serviço da Porsche [...] Esta disposição tem precedência sobre qualquer outra disposição contratual entre você e a Porsche ou sua Concessionária Porsche. [...] Projeto: Plataforma NFT - OSO-1421 [...] (Tradução livre)
Ou seja, a Plataforma de NFTs é realmente da própria Porsche. Ressalta-se que, em face das circunstâncias acima relatadas, aplica-se ao caso a denominada teoria da aparência para responsabilizar a Porsche por eventuais danos, hipoteticamente causados pela aludida Plataforma, a consumidores residentes ou domiciliados no Brasil.
Neste sentido, citam-se os seguintes julgados do Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. TEORIA DA APARÊNCIA. TEORIA DA CONFIANÇA. EMPRESA NACIONAL QUE SE BENEFICIA DE NOME E MARCA ESTRANGEIRA. RESPONSABILIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E SOLIDÁRIA. CONCEITO DE FORNECEDOR. PRÁTICA ABUSIVA. ARTS. 18, 34 E 39 DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. ART. 265 DO CÓDIGO CIVIL. DEVER DE PRESTAÇÃO DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA.[...] 3. Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, "não se revela razoável exigir-se que o consumidor, que adquire um produto de marca de renome mundial, como a SONY, tenha ciência de que a empresa SONY BRASIL S/A difere-se da SONY AMERICA INC., sendo possível a aplicação da teoria da aparência". 4. À luz do sistema de proteção do consumidor, a teoria da aparência e a teoria da confiança, duas faces da mesma moeda, protegem a segurança jurídica e a boa-fé objetiva dos sujeitos vulneráveis e dos contratantes em geral. Em consequência, atribuem força negocial vinculante à marca mundial em detrimento de ficções contratuais, contábeis ou tributárias que contrariam a realidade dos fatos tal qual se apresentam nas transações de consumo e, simultaneamente, embasam – como técnica de defesa judicial contra o consumidor-vulnerável – a fragmentação de pessoas jurídicas em mercado reconhecidamente globalizado. 5. Quando campanhas publicitárias massivas e altamente sofisticadas são veiculadas de maneira a estimular sentimento, percepção e, correlatamente, expectativas legítimas dos consumidores, de um produto ou serviço único, que dilui e supera fronteiras nacionais – tornando irrelevante o país em que a operação negocial venha a se realizar –, justifica-se afastar a formalidade burocrática do nome do fornecedor ocasionalmente estampado na Nota Fiscal ou no contrato. Desarrazoado pretender que o consumidor faça distinção entre Sony Brasil Ltda. e Sony America Inc. Para qualquer adquirente, o produto é simplesmente Sony, é oferecido como Sony e comprado como Sony. [...] 8. Logo, para fins legais, consoante dispõe o art. 34 do CDC e por força da teoria de aparência e da teoria da confiança, a Sony Brasil inclui-se no rol de fornecedores e, portanto, na cadeia de solidariedade prevista no art. 18 do CDC. Daí sua responsabilidade por vício de qualidade ou de quantidade em produtos que ostentem a mesma marca, obrigação genérica que inclui a de prestar assistência técnica – de início, não custa lembrar, foi esse o único pleito (modesto, legítimo e compreensível) do consumidor lesado. [...] (STJ. Recurso Especial nº 1.709.539 - MG 2017/0292269-1. Relator: Ministro Herman Benjamin. Segunda Turma. Jugado em 05/06/2018). (Grifado)
RECURSO ESPECIAL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO – DANOS MATERIAL E MORAL – RELAÇÃO DE CONSUMO – DEFEITO DO PRODUTO - FORNECEDOR APARENTE – MARCA DE RENOME GLOBAL - LEGITIMIDADE PASSIVA – RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.INSURGÊNCIA RECURSAL DA EMPRESA RÉ. Hipótese: A presente controvérsia cinge-se a definir o alcance da interpretação do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor, a fim de aferir se na exegese de referido dispositivo contempla-se a figura do fornecedor aparente - e, consequentemente, sua responsabilidade -, entendido como aquele que, sem ser o fabricante direto do bem defeituoso, compartilha a mesma marca de renome mundial para comercialização de seus produtos. 1. A adoção da teoria da aparência pela legislação consumerista conduz à conclusão de que o conceito legal do art. 3º do Código de Defesa do Consumidor abrange também a figura do fornecedor aparente, compreendendo aquele que, embora não tendo participado diretamente do processo de fabricação, apresenta-se como tal por ostentar nome, marca ou outro sinal de identificação em comum com o bem que foi fabricado por um terceiro, assumindo a posição de real fabricante do produto perante o mercado consumidor. 2. O fornecedor aparente em prol das vantagens da utilização de marca internacionalmente reconhecida, não pode se eximir dos ônus daí decorrentes, em atenção à teoria do risco da atividade adotada pelo Código de Defesa do Consumidor. Dessa forma, reconhece-se a responsabilidade solidária do fornecedor aparente para arcar com os danos causados pelos bens comercializados sob a mesma identificação (nome/marca), de modo que resta configurada sua legitimidade passiva para a respectiva ação de indenização em razão do fato ou vício do produto ou serviço. 3. No presente caso, a empresa recorrente deve ser caracterizada como fornecedora aparente para fins de responsabilização civil pelos danos causados pela comercialização do produto defeituoso que ostenta a marca TOSHIBA, ainda que não tenha sido sua fabricante direta, pois ao utilizar marca de expressão global, inclusive com a inserção da mesma em sua razão social, beneficia-se da confiança previamente angariada por essa perante os consumidores. É de rigor, portanto, o reconhecimento da legitimidade passiva da empresa ré para arcar com os danos pleiteados na exordial. 4. Recurso especial desprovido.
(STJ. Recurso Especial nº 1.580.432 - SP - 2012/0177028-0. Relator: Ministro Marco Buzzi. Quarta Turma. Julgado em: 06/12/2018)
Apesar dos julgados acima se referirem à aplicação da teoria da aparência nas relações de consumo, ela também pode ser aplicada para relações não consumeristas.
Nesse sentido, esclarece Juliana Smith7:
A Teoria da Aparência é princípio de direito que fundamenta as relações empresariais e, por não estar expresso, é muitas vezes olvidado pelos operadores do direito. O Código Civil de 2002 colaborou com este princípio, lançando seus fundamentos em vários dispositivos legais.
Nasce então, a recepção à Teoria da Aparência, que aplicada em comunhão com o Princípio da Boa-fé, possui o escopo de conferir segurança jurídica às relações empresariais, evitando que ocorram entraves provocados pela exigência demasiada de verificação das informações prestadas, tanto pelos contratantes quanto pelos contratados.
Esta, por sua vez, efetiva-se por meio da proteção ao terceiro de boa-fé, que confiando na publicidade conferida a atos e informações prestadas, bem como na aparência legítima exteriorizada pelo sujeito, não poderá ser prejudicado em detrimento de quem aparentou legitimidade enquanto não a possuía.
Para fundamentar a aplicação da teoria da aparência às relações empresariais, citam-se os artigos 113, § 1º, incisos III e IV, e artigo 422, ambos do Código Civil Brasileiro:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:[...]
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; [...]
Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.
Quanto à existência ou não de representação no Brasil, este autor verificou, conforme informações do website da Porsche no Brasil, que desde agosto de 2015 foi criada sua 18° subsidiária no mundo e a primeira da América Latina, cujo endereço se localiza na cidade de São Paulo.
Ademais, ao se fazer consulta na Junta Comercial do Estado de São Paulo, encontram-se as seguintes informações públicas:
a) o nº do CNPJ da subsidiária da Porsche no Brasil;
b) seu tipo societário é de sociedade limitada;
c) Dr. ing. h.c. f. porsche aktiengesellschaft é a atual diretora e sócia única da sociedade. Ou seja, trata-se, atualmente, de sociedade unipessoal limitada, cujo único sócio é a pessoa jurídica estrangeira da Porsche; e
d) há uma nova filial no Estado de Santa Catarina.
Assim, nos termos do mencionado artigo 21, inciso I e parágrafo único, do CPC, a jurisdição brasileira seria competente para julgar a causa mesmo que não decorresse de relação de consumo, pois a Porsche tem representação no Brasil.
Mas, questiona-se, por amor à efetividade do processo: já se sabe, no caso concreto, que a referida ação, proposta por comprador residente no Brasil em face da Porsche, poderá ser ajuizada em nosso país. No entanto, será necessária a citação da Porsche alemã, por carta rogatória, ou bastaria a citação da representante brasileira?
Em resposta, nos termos do artigo 75, inciso X, do CPC, não haverá necessidade de citação da Porsche alemã:
Art. 75. Serão representados em juízo, ativa e passivamente:
[...]
X - a pessoa jurídica estrangeira, pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil;
Ademais, ressalta-se que, para a citação com fulcro no inciso X acima, a ausência do termo “agência, filial ou sucursal” no nome empresarial da representante brasileira da Porsche, não é critério para se afastar o supracitado artigo 21, inciso I e parágrafo único, do CPC. Nesse sentido, cita-se julgado do Superior Tribunal de Justiça:
RECURSO ESPECIAL. INTERCEPTAÇÃO DE DADOS. ASTREINTES. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE POR DECISÕES DO STF. APLICABILIDADE SUBSIDIÁRIA DO CPC AO PROCESSO PENAL. MULTA DIÁRIA E PODER GERAL DE CAUTELA. TEORIA DOS PODERES IMPLÍCITOS. MEDIDAS CONSTRITIVAS SOBRE O PATRIMÔNIO DE TERCEIROS. BACEN-JUD E INSCRIÇÃO EM DÍVIDA ATIVA. PRESUNÇÃO RELATIVA DE LIQUIDEZ E CERTEZA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONTRADITÓRIO POSTERGADO. ANÁLISE ESPECÍFICA DO CASO CONCRETO. CUMPRIMENTO INTEGRAL. NÃO OCORRÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: IMPOSSIBILIDADE DE APRECIAÇÃO (SÚMULAS 282 E 356 DO STF). PROPORCIONALIDADE DA MULTA APLICADA. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. 1. Estes autos não cuidam da criptografia de ponta-a-ponta, matéria cuja constitucionalidade encontra-se sob análise do Supremo Tribunal Federal (ADI 5527, de relatoria da Min. Rosa Weber e ADPF 403, do Min. Edson Fachin). 2. O Facebook Brasil é parte legítima para representar, no Brasil, os interesses do WhatsApp Inc, subsidiária integral do Facebook Inc. “Com o fim de facilitar a comunicação dos atos processuais às pessoas jurídicas estrangeiras no Brasil, o art. 75, X, do CPC prevê que a pessoa jurídica estrangeira é representada em juízo 'pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil' e o parágrafo 3º do mesmo artigo estabelece que o 'gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo'. Considerando-se que a finalidade destes dispositivos legais é facilitar a citação da pessoa jurídica estrangeira no Brasil, tem-se que as expressões "filial, agência ou sucursal" não devem ser interpretadas de forma restritiva, de modo que o fato de a pessoa jurídica estrangeira atuar no Brasil por meio de empresa que não tenha sido formalmente constituída como sua filial ou agência não impede que por meio dela seja regularmente efetuada sua citação.” (HDE 410/EX, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 20/11/2019, DJe 26/11/2019). A regras advinda do precedente não deve, no caso concreto, ficar restrita à possibilidade de citação e intimação, sem possibilitar a cominação de multa. Interpretação restritiva tornaria inócua a previsão legal, pois, uma vez intimada, bastaria à representante nada fazer. Portanto, a possibilidade das astreintes revela-se imperiosa até para que se dê sentido ao dispositivo. [...] (STJ. Recurso Especial nº 1.853.580 - SC - 2019/0373629-8. Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Terceira Seção. Julgado em: 24/06/2020.
Nesse sentido, cita-se também o seguinte julgado:
SENTENÇA ESTRANGEIRA. PEDIDO DE HOMOLOGAÇÃO. INTERESSE PROCESSUAL E LEGITIMIDADE ATIVA. PENDÊNCIA DE DEMANDA NO JUDICIÁRIO BRASILEIRO. PARTE NO PROCESSO ESTRANGEIRO. JURISDIÇÃO BRASILEIRA PARA A INTERNALIZAÇÃO. PRESENTAÇÃO, REPRESENTAÇÃO E REGULARIDADE DA CITAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA PARA RESPONDER À DEMANDA NO BRASIL. PRESSUPOSTOS POSITIVOS E NEGATIVOS. ARTIGOS 15 E 17 DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. ARTIGOS 963 A 965 DO CPC/2015. ARTS. 216-C, 216-D E 216-F DO RISTJ. [...] 9. As pessoas jurídicas em geral são representadas em juízo "por quem seus atos constitutivos designarem ou, não havendo essa designação, por seus diretores" (art. 75, VIII, do CPC. 10. Com o fim de facilitar a comunicação dos atos processuais às pessoas jurídicas estrangeiras no Brasil, o art. 75, X, do CPC prevê que a pessoa jurídica estrangeira é representada em juízo "pelo gerente, representante ou administrador de sua filial, agência ou sucursal aberta ou instalada no Brasil" e o parágrafo 3º do mesmo artigo estabelece que o "gerente de filial ou agência presume-se autorizado pela pessoa jurídica estrangeira a receber citação para qualquer processo". 11. Considerando-se que a finalidade destes dispositivos legais é facilitar a citação da pessoa jurídica estrangeira no Brasil, tem-se que as expressões "filial, agência ou sucursal" não devem ser interpretadas de forma restritiva, de modo que o fato de a pessoa jurídica estrangeira atuar no Brasil por meio de empresa que não tenha sido formalmente constituída como sua filial ou agência não impede que por meio dela seja regularmente efetuada sua citação. 12. Exigir que a qualificação daquele por meio do qual a empresa estrangeira será citada seja apenas aquela formalmente atribuída pela citanda inviabilizaria a citação no Brasil daquelas empresas estrangeiras que pretendessem evitar sua citação, o que importaria concordância com prática processualmente desleal do réu e imposição ao autor de óbice injustificado para o exercício do direito fundamental de acesso à ordem jurídica justa. 13. A forma como de fato a pessoa jurídica estrangeira se apresenta no Brasil é circunstância que deve ser levada em conta para se considerar regular a citação da pessoa jurídica estrangeira por meio de seu entreposto no Brasil, notadamente se a empresa estrangeira atua de fato no Brasil por meio de parceira identificada como representante dela, ainda que não seja formalmente a mesma pessoa jurídica ou pessoa jurídica formalmente criada como filial. 14. No caso dos autos, a ré CROSSPORTS tem como única Diretora a empresa estrangeira "Amicorp Management Limited". O grupo Amicorp, por sua vez, apresenta-se como grupo presente em dezenas de países, onde fornece diversos serviços capazes de atender aos interesses daquelas empresas que o contratam. A contestante "Amicorp do Brasil Ltda.", por sua vez, se apresenta como uma "empresa de representação do Grupo Amicorp" (https://www.amicorp.es/offices/sao-paulo). De conseguinte, "Amicorp do Brasil Ltda." deve ser compreendida como um entreposto no Brasil da Diretora (Amicorp) da ré CROSSPORTS, capaz de receber a citação em nome da ré CROSSPORTS, validamente, nos termos do art. 75, VIII e X do CPC/2015. [...] 18. Sentenças estrangeiras homologadas. (STJ – Homologação de Sentença Estrangeira - HDE 410 EX 2017/0061034-6. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Corte Especial. Julgado em 20/11/2019)
Em sequência, será aborda a peculiaridade do Marketplace de NFTs da Binance, no que concerne às relações jurídicas entre residentes ou domiciliados no Brasil e a respectiva Plataforma.
1.5. A peculiaridade da Binance quanto às regras definidoras da jurisdição nacional
A Binance, considerada atualmente a maior exchange centralizada de criptomoedas do mundo, tem também um marketplace de NFTs, inclusive em versão na língua portuguesa (https://www.binance.com/pt-BR/nft/home) e possui representação no Brasil.
Este autor verificou, na página de pesquisa do website oficial da Junta Comercial do Estado de São Paulo, que a Binance é representada no Brasil pela sociedade empresária de nome B Fintech Serviços de Tecnologia Ltda.
Ademais, consta na ficha cadastral simplificada, da referida sociedade registrada no Brasil, que seu único sócio é a própria pessoa jurídica estrangeira da Binance, qual seja, a Binance (Services) Holding Limited.
Além disso, este autor constatou, nos Termos de Uso da Binance, redigidos em português, que em eventual litígio entre as partes a jurisdição nacional para julgar a causa será a brasileira:
X. RESOLUÇÃO DE CONTROVÉRSIAS E FORO APLICÁVEL 1. Notificação de Reivindicação e Período de Resolução de Controvérsias. Entre em contato com a Binance primeiro! A Binance quer resolver suas preocupações sem recorrer a processos judiciais formais, quando possível. Caso tenha uma controvérsia com a Binance, você deve entrar em contato com a Binance, quando um protocolo de atendimento será atribuído. A Binance tentará resolver sua controvérsia internamente o mais rapidamente possível. As partes concordam em negociar de boa-fé para resolver a controvérsia (cujas discussões permanecerão confidenciais e estarão sujeitas às regras aplicáveis que protegem as discussões de acordo de uso como prova em qualquer processo judicial). 2. Lei Aplicável. A interpretação e o escopo destes Termos de Uso estarão de acordo com a legislação e regulamentação vigente na República Federativa do Brasil. 3. Foro. Qualquer litígio relacionado ao uso da plataforma Binance e o uso dos Serviços pelos Usuários deverá ser submetido ao Foro da Comarca de São Paulo, Estado de São Paulo, Brasil, que prevalecerá sobre qualquer outro, por mais privilegiado que seja, e será julgado conforme as leis da República Federativa do Brasil.
Todavia, este autor faz uma ressalva à expressão “[...] prevalecerá sobre qualquer outro, por mais privilegiado que seja,[...]”, do item 3 acima. Em que pese ela ser importante para constatar que, por cláusula contratual, definiu-se que a jurisdição brasileira julgará a causa, o item falha quanto a determinar que a competência territorial, do foro da Comarca de São Paulo, sempre prevalecerá sobre qualquer outro!
Isso porque, se tratar de relação de consumo e for constatado prejuízo ao consumidor em razão da distância da Comarca de seu domicílio perante o foro de eleição acima, afastar-se-á a determinação do citado item 3, por ser abusiva, para prevalecer a competência territorial do foro da Comarca do domicílio do autor, nos termos dos artigos 6º, inciso VIII, e 101, inciso I, do CDC, combinado com o artigo 63, § 3º, do CPC:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor: [...] VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências; [...] Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas: I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor; [...] (Grifado)
Assim, sem olvidar a ressalva acima apontada, trata-se de exemplo de aplicação do inciso III, do artigo 22 do CPC, o que, por si só, é fundamento suficiente para o exercício da jurisdição brasileira em eventual litígio entre comprador, residente ou domiciliado no Brasil, e a Binance, independentemente de existir ou não relação de consumo ou a concretização das hipóteses previstas no artigo 21 do CPC.
Ademais, constata-se, inclusive, que a Binance definiu contratualmente que se submeterá ao direito material brasileiro, em caso de eventuais disputas entre as partes.
Por fim, destacam-se os seguintes julgados no sentido de que a supracitada B. Fintech responde pela Binance no Brasil8:
Em junho de 2021, a juíza Juliana Franca Vassetto Diniz Junqueira, da comarca de Itatiba (SP), foi ainda mais enfática: “Evidente que integram o mesmo grupo econômico voltado à corretagem e custódia de criptomoedas, pelo que respondem solidariamente B. FINTECH SERVIÇOS DE TECNOLOGIA LTDA e BINANCE por eventuais danos causados ao consumidor. De fato, a requerida está mesmo representando nacionalmente a corretora internacional” (Processo 1001481-79.2021.8.26.0281 TJ-SP).
Em janeiro deste ano, a juíza Cláudia Carneiro Calbucci Renaux, da 7ª Vara Cível de São Paulo, também ressaltou que as empresas respondem de forma solidária no Brasil.
“A ré [B Fintech] tem legitimidade para figurar no polo passivo da demanda. A petição inicial narra de maneira adequada e lógica a relação jurídica mantida entre o autor e a empresa Binance (fato reconhecido pela ré). E, embora a B. FINTECH SERVIÇOS DE TECNOLOGIA LTDA, não tenha atuado efetivamente como corretora contratada pelo autor, a princípio, verifica-se estreita relação desta com a corretora BINANCE, pessoa jurídica que viabilizou ao autor o investimento em criptomoeda”, diz a magistrada (Processo 1066878-49.2021.8.26.0002).
Conclusão
Querido leitor ou leitora, obrigado por transcorrer seus olhos e sua temporalidade na leitura deste singelo texto que abordou apenas uma fração da fascinante complexidade do ecossistema dos NFTs.
Partindo-se da discussão sobre o direito de arrependimento do consumidor nas compras internacionais de NFTs, optou-se por realizar pesquisa em duas etapas, das quais a primeira, sobre os limites da jurisdição brasileira, gerou os resultados expostos neste artigo.
Sob a perspectiva dos compradores de NFTs residentes ou domiciliados no Brasil, o trabalho sugere respostas à seguinte questão-problema: será que a jurisdição brasileira poderia julgar demanda proposta por comprador, residente ou domiciliado no Brasil, em face de uma plataforma estrangeira de comércio de NFTs?
Asseverou-se que, sem a supracitada primeira fase da pesquisa, seria inútil tentar responder, pelas regras de conexão do Direito Internacional, se o direito material aplicável seria o estrangeiro ou o brasileiro, uma vez que nada adiantaria esta conclusão se a jurisdição brasileira não pudesse julgar a causa.
Assim, no que tange ao tema delimitado neste texto, defendeu-se que, quando se tratar de relação internacional de consumo e o consumidor for residente ou domiciliado no Brasil, a jurisdição brasileira poderá julgar a causa mesmo que a pessoa jurídica estrangeira não tenha representação no Brasil, com fundamento nos artigos 1º, inciso III; 4º, inciso II; 5º, inciso XXXII e §1º; 22, inciso VIII; 24, inciso VIII e § 1º, ambos da CF/88, combinados com o artigo 48 do ADCT; artigo 17 da LINDB; artigos 4º e 314 do Código de Bustamante; artigo 7º, inciso XIII, do Marco Civil da Internet; artigo 13 da Lei nº 14.478/2022 e artigo 22, inciso II, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, asseverou-se que, quando inexistir a mencionada representação, a citação deverá ser por carta rogatória, nos termos do artigo 237, inciso II, do CPC, o que acabaria por afastar o célere procedimento e competência dos Juizados Especiais Cíveis e a possibilidade de se evitar o eventual ônus dos honorários sucumbência, nos termos do artigo 51, inciso II, e artigo 55, da Lei nº 9.099/95.
Ademais, foram descritas as hipóteses nas quais, mesmo inexistindo a relação de consumo, a jurisdição brasileira poderia julgar a causa internacional, cujo interesse pela demanda, para o comprador, poderia ser a aplicação de regras do direito civil ou empresarial que fundamentassem eventual reparação de prejuízos.
Quanto ao enfrentamento das hipóteses que afastariam a incidência do artigo 22, inciso II, do CPC, para as quais restaria verificar a ocorrência das hipóteses dos artigos 21, incisos I, II e III e 22, inciso III, do mesmo Código, iniciou-se com o estudo da relação não consumerista quando o comprador, residente ou domiciliado no Brasil, exercer atividade reiterada e profissional de revenda de NFTs, por não ser destinatário final do produto, tal qual exige o artigo 2º do CDC.
Em sequência, analisou-se a condição do comprador, residente ou domiciliado no Brasil, investidor de NFTs, para a qual só se afastaria a relação de consumo se o adquirente fosse classificado como investidor profissional ou qualificado, inclusive se o ativo digital tratar de Security Token, com fulcro no artigo 4º da LINDB e artigos 11 e 12, da Resolução CVM nº 30/2021.
Quanto a se afastar ou não a aplicação do artigo 22, inciso II, do CPC, foi asseverado que o ônus da prova é do réu, nos termos do artigo 373, inciso II, do CPC, para as hipóteses em que o autor sustentar a existência de relação de consumo.
Além disso, ressaltou-se que, caso constatado que a jurisdição brasileira não poderá julgar a causa, o processo deverá ser extinto sem julgamento de mérito, nos termos do artigo 17 do CPC, combinado com o artigo 485, incisos IV e VI, do mesmo Código.
Ressaltou-se, ainda, a importância do KYC (Know Your Customer - Conheça seu Cliente) para que as plataformas de NFTs tivessem elementos de prova para a alegação de que o comprador não seria destinatário final do produto, seja por exercer atividade profissional e reiterada de revendas de NFTs, seja por ser investidor profissional ou qualificado.
Analisou-se também o caso específico da Plataforma de NFTs da Porsche, com destaques à teoria da aparência e à constatação de que a Porsche tem representação no Brasil.
Ademais, evidenciou-se o caso especial da Binance, uma vez que, além de ter representação no Brasil, é exemplo de aplicação da regra do artigo 22, inciso III, do CPC, em razão dos seus Termos de Uso, mas com a ressalva do foro abusivo de eleição quando se tratar de relação de consumo.
Assevera-se que o estudo tratou de plataformas centralizadas. No entanto, plataformas descentralizadas não estão imunes à observância de regras de proteção aos consumidores, em que pese existir dificuldade prática quanto à responsabilizações.
Ocorre que, a descentralização não pode ser motivo para se afastar o Direito do Consumidor, uma vez que colecionadores e compradores em geral demandam segurança jurídica para as suas transações e um mínimo de proteção jurídica em suas relações no Ecossistema dos NFTs e, assim, cabe à Governança das plataformas, centralizadas ou descentralizadas, se preocupar quanto à proteção de sua própria comunidade, agentes ativos nas respectivas Blockchains.
Ademais, caso alguma plataforma de NFTs intente rejeitar a proteção de consumidores de certos países, teria a opção de aplicar o Geo-blocking e, não o fazendo, assume os riscos de não conformidade com as legislações consumeristas respectivas.
Nesse sentido, há que se pensar em se discutir um framework regulatório para o Ecossistema dos Tokens Não Fungíveis, objetivando-se a proteção dos integrantes da comunidade e, de preferência, mediante autorregulação democrática com o uso de ferramentas tecnológicas para proteção efetiva, pautas que devem ser constantemente enfatizadas, em vez de menosprezadas.
Desse modo, este autor espera que este texto possa contribuir com os estudos sobre os limites da jurisdição brasileira quanto às causas decorrentes de contratos internacionais de NFTs e, obviamente, está ciente de que os debates e análises jurídicas sobre o tema não se encerram aqui e, ademais, aguarda a contribuição crítica para continuar a pesquisar as implicações jurídicas resultantes dos atos e relações pertinentes ao ecossistema cripto.
E lembre-se, a pesquisa continua... O próximo texto sobre o tema examinará qual direito material, estrangeiro ou brasileiro, seria aplicado ao caso e, ainda, se há alguma solução tecnológica para suplantar eventual dificuldade de eficácia do direito de arrependimento, com reembolso, nas compras internacionais de NFTs.
Autor: Adriano Felix é advogado e professor universitário de Direito Internacional, Empresarial e Tributário. Possui Mestrado em Direito Agroambiental e Mestrado em Educação, ambos pela Universidade Federal de Mato Grosso. Na sua atuação prática, presta assessoria jurídica para a estruturação e compliance regulatório de negócios e projetos em blockchain, especialmente relacionados a NFTs, Tokenização de ativos, Exchanges, ICO/STO, IEO, IDO, Startups Cripto e Fundos de Investimento Cripto.
Resumidamente, os Tokens Não Fungíveis, no inglês, Non-Fungible Tokens ou NFTs, sigla mais comumente usada, são tokens digitais criptográficos, criados por contratos inteligentes (smart contracts) e registrados e verificáveis em uma blockchain e que, por disporem de uma identificação exclusiva e imutável, geralmente com adição de informações, representam um ativo digital ou até real cuja natureza é infungível, ou seja, correspondem a um único bem, inexistindo outro idêntico, tal qual a exclusividade de uma obra de arte. (HOR, Benjamin et al. How to NFT. Cingapura: CoinGecko, 2022; p. 4-5)
PORSCHE. Mint checkout. NFT Porsche. 2023. Disponível em: <https://nft.porsche.com/mint/0xCcDF1373040D9Ca4B5BE1392d1945C1DaE4a862c> Acesso em: 26 jan. 2023.
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“[...] DeFi é o movimento que permite aos usuários utilizar serviços financeiros, como tomar empréstimos, emprestar e negociar, sem a necessidade de entidades centralizadas. Esses serviços financeiros são fornecidos por meio de Aplicativos Descentralizados (Dapps), nos quais a maioria é implantada na plataforma Ethereum.” (HOR, Benjamin et al. How to DeFi. Tradução livre. Cingapura: CoinGecko, 2020; p. 15.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 21 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017; p. 124.
TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2018; p. 686.
SMITH, Juliana. Teoria da aparência: uma análise crítica ao artigo 50 e 1.1015 do Código Civil de 2002. Revista do Ministério Público do RS. N. 63. Porto Alegre. Maio 2009 – Setembro de 2009. P. 19.
MARTINES, Fernando. Justiça decidiu em três casos que a B Fintech responde pela Binance no Brasil. Disponível em: <https://portaldobitcoin.uol.com.br/justica-ja-decidiu-em-tres-casos-que-a-b-fintech-responde-pela-binance-no-brasil/> Acesso em: 21 fev. 2023.
Excelente trabalho! Parabéns de verdade.