Revista de Direito Descentralizado
Embora possuam diferenças básicas no acolhimento de DAOs, Suíça e as Ilhas Marshall têm se tornado cada vez mais os polos de inovação dessas novas organizações.
CAPÍTULO 2 (PARTE 1): PORQUE A SUIÇA E AS ILHAS MARSHAL CHAMAM ATENÇÃO DAS DAOs?
Guilda de Jurídico da BanklessBR & DLT360 Consulting
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Prezada nação Bankless,
Como vimos no capítulo anterior, Organizações Autônomas Descentralizadas é um sistema que permite que as pessoas se coordenem e governem mediados por um conjunto de regras autoexecutáveis implantadas em uma blockchain pública, e cuja governança é descentralizada (ou seja, independente de um controlador centralizado).
As DAOs se propõem descentralizadas pois operam com base nos códigos programados na blockchain por meio de contratos inteligentes. A validação das regras e funcionalidades de uma DAO é realizada por uma rede descentralizada.
O objetivo das DAOs é criar um modelo organizacional capaz de endereçar as limitações de projetos de governança centralizados, democratizando a gestão e direcionando esforços para uma ampla variedade de objetivos. A utilização de códigos open source, a tecnologia blockchain e os smart contracts têm o potencial de oferecer maior transparência, confiança e velocidade em comparação às organizações e formas de gestão tradicionais.
Nos últimos anos o surgimento e crescimento das DAOs vem ocorrendo de forma exponencial. De acordo com a DeepDao, em 2021 o tesouro das DAOs cresceu 40 vezes, de 40 milhões de dólares para 16 bilhões de dólares. O número de integrantes de DAOs cresceu de 13 mil para 1.6 milhão de pessoas, um aumento de 130 vezes.
Diante da relevância que as DAOs e suas atividades têm ganhado no mundo, alguns países já estão introduzindo leis e regulamentações para tratar sobre essa nova forma de organização social.
Porém, enquanto muitos países não reconhecem juridicamente a existência das DAOs, é preciso buscar adequar os seus objetivos e estrutura de funcionamento com os institutos de direito existentes até o momento.
1. REGULAMENTAÇÃO DE DAOs NA SUIÇA
1.1. O QUE É CRYPTO VALLEY?
A Suíça abriga um dos maiores hubs de negócios e inovação em Web3 conhecido como Crypto Valley. O Crypto Valley é localizado entre a Suíça e Liechtenstein e é uma das regiões do mundo mais sólidas em relação aos projetos que envolvem o ecossistema dos criptoativos e blockchain .
Em dezembro de 2021, as 50 maiores empresas do Crypto Valley alcançaram o valor de mercado de 661.8 bilhões de dólares. Este valor representou um crescimento de 464% em relação ao ano de 2020. Neste mesmo período, o Crypto Valley passou a ter 1.128 empresas, um aumento de 18% em comparação a 2020.
Estes números expressivos se devem a um conjunto de fatos que tornaram o Crypto Valley um excelente local para quem pretende empreender na área de tecnologia e se envolver com projetos Web3.
A região oferece uma convergência muito grande de empreendedores, especialistas em tecnologia, capital disponível para investimento e instituições acadêmicas que fomentam pesquisa para desenvolvimento deste ecossistema.
Além disso, o poder público atua neste mercado por meio de uma regulamentação que incentiva a inovação. Há apoio do Governo Federal e órgãos regulatórios que permitem a evolução de diferentes iniciativas no contexto da tecnologia blockchain e criptoativos.
Apesar do ambiente institucional favorável à Web3, a Suíça ainda não possui legislação regulamentando DAOs. Neste contexto, as DAOs que quiserem se formalizar na Suíça precisam optar entre: (i) Se qualificar como uma entidade internacional; e (ii) Adotar um tipo de pessoa jurídica existente na legislação da Suíça e realizar as devidas adaptações.
1.2. QUALIFICAÇÃO DA DAO COMO ENTIDADE INTERNACIONAL
A regularização de uma DAO que pretende exercer atividades na Suíça pode ocorrer por meio do registro de entidades estrangeiras, submetidas aos regramentos do Direito Internacional Privado.
De acordo com o Swiss Private International Law Act (PILA), as DAOs podem atuar regularmente na Suíça caso se qualifiquem como uma pessoa jurídica estrangeira1:
Art. 150, parágrafo 1º do PILA: “para os fins desta lei, uma empresa é qualquer associação organizada de pessoas ou unidade organizada de ativos”.
Assim, o primeiro passo para a realização adequada da questão jurídica relacionada às DAOs é identificar se a atividade praticada em território suíço envolve uma empresa de acordo com o seu art. 1502.
A avaliação sobre o fato de uma DAO ser ou não uma empresa, de acordo com o previsto no art. 150 da PILA é bastante subjetiva. Por exemplo, a forma jurídica da entidade e se ela possui ou não personalidade jurídica não é um critério relevante.
Porém, a configuração de uma DAO como pessoa jurídica é uma avaliação feita em duas etapas. Caso cumpra a definição do parágrafo 1º do art. 150 do PILA, será preciso que a DAO também seja legalmente reconhecida em seu estado de residência, conforme determina o art. 154 do PILA. Sem o cumprimento destes requisitos a DAO não poderá ser considerada um sujeito de direito e praticar atos jurídicos na Suíça.
Neste sentido, como a legislação obriga o registro formal das pessoas jurídicas no estado de residência, as DAOs sem formalização, somente baseada em blockchain e gerida por smart contratcs e tokens, não possuem reconhecimento jurídico na Suíça.
1.3. DAOS NA SUÍÇA E OUTRAS POSSIBILIDADES
A ausência de regulamentação específica em relação às inovações sociais como as DAOs pode ser contornada por meio de adaptações nos diferentes tipos de pessoa jurídica existentes.
Por exemplo, a Suíça é uma jurisdição favorável para o estabelecimento de fundações e associações. As fundações na Suíça são um excelente modelo para regularização de uma DAO para projetos de longo prazo, a exemplo de um projeto de desenvolvimento de infraestrutura para a Web3. Este é o caso da Ethereum Foundation e da Dfinity Foundation que são devidamente registradas em Zug, no coração do Crypto Valley.
A relação das fundações com projetos de longo prazo se deve às formalidades e rigidez de alguns procedimentos. As fundações na Suíça precisam estar vinculadas a um registro público e sob a supervisão das Autoridades Federais da Suíça.
Além disso, as alterações no estatuto das fundações não são tão simples quanto alterar um código nos smart contracts, eles precisam cumprir o dever de transparência e publicidade.
Outra vantagem das fundações é que elas possuem personalidade jurídica própria e não possuem beneficiário final, diminuindo a atribuição de responsabilidade pessoal de seus participantes.
As associações também são uma opção para a regularização de DAOs sob a legislação da Suíça. Por possuírem uma alta flexibilidade se comparado com as fundações, a governança de uma DAO via associação pode ser muito benéfica.
Por conta dessa flexibilidade, as associações são uma solução bastante interessante para projetos com alto grau de descentralização. Elas também gozam de personalidade jurídica própria, adicionando um grau de proteção em relação à responsabilização pessoal de seus membros.
Por exemplo, as associações na Suíça não precisam ter um conselho composto somente por residentes no país e seus membros podem ser pessoas físicas ou jurídicas. Esta é uma grande vantagem para projetos descentralizados de natureza global.
Por fim, as associações podem ter ou não fins lucrativos. Uma empresa pode se registrar na Suíça como associação, e separar as suas atividades por meio de escritórios independente, limitando a responsabilidade dos participantes de projetos diferentes, bem como fazendo a gestão financeira de forma separada.
1.4. SUIÇA: CONCLUSÃO
A Suíça abriga um dos ambientes mais favoráveis para projetos Web3. O ambiente regulatório favorável, a presença de especialistas em tecnologia, capital de risco disponível e fortes instituições de pesquisa, foram elementos essenciais para a formação do Crypto Valley.
As DAOs ainda não são reconhecidas pela legislação interna da Suíça, mas existem duas soluções jurídicas possíveis para contornar este problema: (i) Vincular a DAO a uma entidade internacional; (ii) Formalizar a DAO por meio de uma fundação ou associação.
A vinculação da DAO a uma entidade internacional demanda a aplicação do Direito Internacional Privado, mas também exige o registro desta DAO em seu estado de residência. DAOs sem registro formalizado na Suíça não são consideradas sujeito de direito e nem possuem capacidade de produzir atos jurídicos.
As DAOs podem ser formalizadas na Suíça como fundações ou associações. As fundações são mais adequadas aos projetos de longo prazo, sobretudo àqueles relativos à infraestrutura da Web3. Este é o caso da Ethereum Foundation.
As fundações possuem um modelo de gestão mais rígido e são supervisionadas pelas Autoridades Federais da Suíça. As associações são uma solução para os projetos com alto grau de descentralização, pois são mais flexíveis em sua estrutura e adaptáveis aos mais diferentes tipos de projeto.
Por fim, enquanto a legislação da Suíça não avança para abranger a complexidade de uma inovação social é preciso entender a realidade estrutural e operacional da DAO para melhor orientar quais medidas a serem tomadas visando a maior segurança dos membros e da entidade.
2. REGULAMENTAÇÃO DE DAOs NAS ILHAS MARSHALL
2.1. ILHAS MARSHALL - O PARAÍSO DAS DAOs?
Como analisamos, a formalização das DAOs tem sido um desafio proeminente para toda a comunidade web3. Enquanto muitos países ignoram o surgimento desses novos ecossistemas empresariais, a República das Ilhas Marshall deu um passo significativo em direção ao futuro.
Construir leis que levem em consideração todas as condições específicas que envolvem as DAOs não é uma tarefa simples, mas o pequeno país situado na Oceania que, embora independente, mantém grandes laços com os EUA, entrou para a história ao reconhecer a existência das DAOs e permitir o seu registro como entidades legais com validade no território internacional.
Essa possibilidade deriva de uma recente emenda na sua legislação, mais especificamente a Lei de Entidades Sem Fins Lucrativos de 2021 (Non-Profit Entities Act 2021).
2.1. INOVAÇÃO LEGISLATIVA PODE SER A RESPOSTA?
Ao invés de tentar incluir as DAOs em algum tipo empresarial já existente, as Ilhas Marshall caminharam na direção que nos parece ser mais acertada: reconhecer as DAOs como entidades jurídicas próprias. É aí que está a grande sacada: as DAO LLCs.
A solução jurídica trazida pelo país é extremamente mais vantajosa e enfrenta diretamente o dilema das DAOs, pois dispensa a necessidade de uma LLC paralela/separada, admitindo as estruturas já pré-existentes e não um armengue com uma pessoa jurídica centralizada para fins de representação formal junto ao Estado.
Essa configuração possibilita que a descentralização não seja sacrificada em nome de uma formalização que desfigura o modelo da organização. A medida é interessante pois aceita as DAOs em sua estrutura orgânica, ao invés de impor normas incompatíveis com os sistemas adotados pelas organizações.
Ao contrário de outros países, a adoção desse novo framework não veio acompanhada de restrições, já que as Ilhas Marshall garantiram os mesmos efeitos que as LLCs possuem, como os efeitos naturais da personalidade jurídica e até a aquisição de imóveis.
2.2. QUAIS SÃO AS VANTAGENS E DESVATAGENS PARA AS DAOs?
As vantagens trazidas pelo Ato são extensas e devem ser observadas pelas DAOs, já que o país mantém uma ampla relação com os EUA e ao mesmo tempo não possui qualquer sujeição às suas leis federais, já que é uma nação soberana.
Isso pode garantir um grau maior de segurança jurídica diante dos recentes avanços dos reguladores, e ao mesmo tempo permitir o acesso a diversos serviços dos EUA, como serviços postais.
Um fator a ser ressaltado é que o processo de formalização das DAO LLC nas Ilhas Marshall respeita profundamente os termos e modelos de governança adotados pelas organizações, de modo que não há uma imposição legal de funcionamento ou adaptação de toda a operação e gestão para que o processo se concretize.
O processo de incorporação da DAO nas Ilhas Marshall é bastante atraente para a maioria das DAOs, uma vez que não exigem que todos os membros sejam elencados, apenas os que possuem mais de dez porcento da oferta dos tokens de governança, além de dispensarem a formação de um conselho ou diretoria para a formalização.
Em contrapartida, os membros fundadores farão o KYC (Know Your Costumer) que estará sujeito a validação (consulta em listas de restrições e sanções). Os membros deverão ter o passaporte atualizado, embora isso não signifique figurar em um cargo de diretor, conselheiro ou afins, já que todos os membros terão a mesma proteção jurídica.
Acaba sendo incontroverso que a posição do membro fundador o colocará mais em evidência para todos os efeitos, mas admitindo-se que é impossível formalizar uma empresa sem pessoas envolvidas no processo, esse parece ser um preço pequeno a se pagar tendo em vista a vulnerabilidade dos membros de uma DAO operando informalmente.
Isso é possível graças ao fato de a lei local dotar de validade jurídica à tecnologia Blockchain e aos contratos inteligentes para estes fins.
2.3. O QUE É MIDAO?
Algo curioso é que junto à implementação legal, a República das Ilhas Marshall elencou uma organização chamada MIDAO para prestar suporte às DAOs que queiram efetuar o registro junto ao país.
A MIDAO entrega um procedimento online e enxuto, alerta sobre a possibilidade de finalizar o processo de formalização da DAO em cerca de trinta dias. Apesar disso dividir opiniões, talvez um dos poucos pontos negativos é que a MIDAO, até o momento, é o único canal pelo qual é possível viabilizar o processo.
As Ilhas Marshall bradam as vezes de um longo e bem sucedido histórico em registro de empresas. Dizem oferecer um procedimento menos custoso, um ambiente economicamente saudável para negócios internacionais, já que não figuram em listas de restrição (sanções, evasão fiscal, etc.). Por fim, apresentam uma política fiscal extremamente branda às entidades e seus membros e outros inúmeros benefícios já abordados neste texto.
Naturalmente, é possível identificar um dilema no que tange às Organizações Autônomas Descentralizadas surgidas para coordenar protocolos que geram lucro, já que parece se distanciar do arcabouço legal das Ilhas Marshall.
Entretanto, o guia elaborado pela MIDAO propõe arranjos que parecem “viabilizar” a formalização das DAOs que exercem a governança de protocolos com fins lucrativos, embora isso induza a necessidade de separar jurídica e comercialmente a governança da DAO da outra atividade, numa dinâmica que permitiria exercer a governança e remunerar o protocolo de maneira paralela.
2.4. ILHAS MARSHAL: CONCLUSÃO
Em vários aspectos, a nova regulação tem um potencial de ser predominante no setor de criptoativos. Ainda que tenha sido elaborada para atender às “Non-Profit Entities” (Entidades Sem Fins Lucrativos), isso parece sugerir que não podem ser distribuídos dividendos aos tolken holders.
É seguro dizer que há alguns desafios a serem superados, sobretudo na estruturação das DAOs com fins lucrativos. Contudo, é sábio reconhecer que a legislação trazida pelas Ilhas Marshall representa um avanço incalculável para o futuro das Organizações Autônomas Descentralizadas e deve ser uma referência positiva para o resto do mundo.
Toda a construção regulatória nos faz crer que cada vez mais organizações do gênero optem pela infraestrutura jurídica das Ilhas Marshall. Talvez já estejamos vislumbrando um verdadeiro paraíso para as DAOs.
REFERÊNCIAS
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Gogel David, Bianca Kremer, Aiden Slavin, Kevin Werbach, “Decentralized Autonomous Organizations: Beyond the Hype, White Paper, 2022, https://www.weforum.org/whitepapers/decentralized-autonomous-organizations-beyond-the-hype/#:~:text=Decentralized%20autonomous%20organizations%20are%20disrupting,%2C%20governance%2C%20and%20regulatory%20uncertainty.
Quarmbly, Brian, “DAO treasuries surged 40x in 2021: DeepDAO”, Cointelegraph, 31 December 2021, https://cointelegraph.com/news/dao-treasuries-surged-40x-in-2021-deepdao
CVCV Top 50 Report 2021, “The Blockchain industry in Crypto Valley, Switzerland and Liechtenstein analyzed and visualized”, https://www.cvvc.com/insights
Tradução livre do Swiss Private International Law Act (PILA).
RIVA, Sven. Decentralized Autonomous Organizations (DAOs) in the Swiss Legal Order.
MILLER, Adam. Guide to DAO Incorporation. Agosto, 2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1OHQty4a9SnTAPwEuycTbVj6OO7MQCAgv/view
Acesso: https://www.coindesk.com/policy/2022/02/15/how-the-marshall-islands-is-trying-to-become-a-global-hub-for-dao-incorporation/
Acesso: https://cointelegraph.com/news/legal-daos-why-are-the-marshall-islands-betting-on-a-decentralized-future
Acesso: https://www.cryptoninjas.net/2022/02/15/marshall-islands-recognizes-dao-incorporation/
Acesso: https://www.pixiu.in/social/news/?id=5169&s=s&p1=notification
Acesso: https://www.midao.org/
Non-Profit Corporation Act. Disponível em: http://rmiparliament.org/cms/images/LEGISLATION/PRINCIPAL/1991/1991-0129/Non-ProfitCorporationAct_1.pdf
The Swiss Foundation Code, https://www.swissfoundations.ch/wp-content/uploads/2021/06/9783727206849
Swiss Civil Code, https://www.fedlex.admin.ch/eli/cc/24/233_245_233/en
Tradução livre do Swiss Private International Law Act (PILA).
“For the purposes of this Act, a company is any organised association of persons and any organized unit of assets. “Simple partnerships that have not provided themselves with an organization are governed by the provisions of this Act relating to the law applicable to contracts (Art. 116 et seq).