Revista de Direito Descentralizado
Mais um paraíso fiscal para a conta, hoje a revista vai se debruçar sobre o panorama de DAOs nas Ilhas Cayman.
CAPÍTULO 2 (PARTE 3): ENQUADRAMENTO JURÍDICO DAS DAOs NAS ILHAS CAYMAN
Guilda de Jurídico da BanklessBR & DLT360 Consulting
Prezada nação Bankless,
Historicamente, as Ilhas Cayman é uma pequena ilha que conta com a reputação de ser um paraíso fiscal para grandes investidores pessoa física. Além de indivíduos que movimentam grandes cifras relacionadas, por vezes, às atividades ilícitas.
É possível inferir, portanto, que se trata de uma jurisdição bastante procurada por interessados em ocultar patrimônio ou encobrir rastros financeiros, além da diminuta carga tributária, quando comparada com a grande maioria das demais jurisdições.
Esta atratividade, bem se sabe, não é em vão. De modo geral, as Ilhas Cayman é localizada na costa do Caribe e conta com poucos requisitos referentes à transparência da composição de empresas lá domiciliadas, além de procedimentos enxutos para a abertura de contas bancárias.
Esta visão, ainda que bastante disseminada, não condiz com o exato retrato do país, embora seja notório o incentivo à entrada de capital nos famosos bancos da pequena ilha, o que alimenta fortemente a visão acima retratada. Trata-se de um país que busca se tornar referência em atratividade de empresas de base tecnológica, por meio de suas estratégias fiscais e menor burocracia.
1. A constituição jurídica de uma DAO em Ilhas Cayman
Com a promulgação da Lei das Sociedades sob a forma de Fundações, editada em 2017, houve a introdução da figura da “Sociedade de Fundação”, que funciona tal como uma “trust” incorporada, atribuindo a flexibilidade de uma Fundação típica das jurisdições pautadas na Civil Law[1] quanto aquelas que seguem a tradição Commom Law[2], assegurando a limitação da responsabilidade da pessoa jurídica.
Sob uma perspectiva histórica, a promulgação deste diploma legal – Law 29 of 2017 – ocorreu em momento no qual as DAOs, começou a esboçar alguns experimentos enquanto fenômeno social. Exemplo da época é foi o episódio da The DAO[3], que é considerada por muitos como o primeiro grande experimento envolvendo as chamadas Organizações Autônomas Descentralizadas.
Embora a trajetória das DAOs seja marcada por controvérsias das mais diversas, desde a adequação à terminologia adotada – autonomia e descentralização – até quais os requisitos necessários para que uma organização de fato se torne uma DAO, é fato que existem muitos desafios a serem endereçados e, então, solucionados.
Na esfera jurídica, vale destacar que, apesar das raízes do ecossistema em torno da Web3 serem pautadas pela rejeição à regulação, interferência estatal e participação de intermediários nas relações de mercado, é necessária a devida atenção às regras jurídicas existentes, de modo que haja o desenvolvimento saudável deste mercado emergente.
Para a realidade das DAOs, o equilíbrio entre a filosofia por trás dos conceito puro de descentralização deve ser considerado sob a devida cautela, sobretudo porque a depender das atividades desempenhadas pela DAO os membros podem estar inseridos em situação de elevados riscos jurídicos no que se refere à responsabilidade civil.
Diante disso, cita-se alguns dos problemas jurídicos sensíveis às DAOs não “envelopadas”[4]: a) limitações de interação com terceiros alheios à DAO; b) figurar como parte em contratos; c) possuir a custódia de ativos (com menores riscos jurídicos); d) proteger e deter a titularidade da propriedade intelectual da DAO e; e) tangibilizar os interesses decididos pela DAO, que se conectem com o mundo “off-chain”.
Uma das possíveis soluções para os problemas acima identificados é a constituição de uma pessoa jurídica (incorporation), observando as diversas possibilidades atualmente existentes.
2. Vantagens de constituição de uma Fundação nas Ilhas Cayman
Tratando-se da jurisdição das Ilhas Cayman, a possibilidade de constituição de uma Fundação, que concentra alguns aspectos típicos de uma sociedade empresária, a peculiaridade de não necessitar de acionista (share holder) e, ao mesmo tempo, a possibilidade de designação de beneficiários com direitos limitados para o acesso a recursos, pode ser uma opção atrativa aos interessados em “envelopar” DAOs juridicamente.
Nesta opção, a DAO constituída sem acionistas passaria a ter a figura de um supervisor, desprovido de direitos econômicos ou participação na organização, desempenhando a função de fiscalizar atividades dos diretores da DAO, os quais seriam responsáveis por cumprir com as obrigações firmadas junto à organização.
Vale consignar que esta jurisdição “crypto-friendly” adota um modelo regulatório específico para provedores de ativos virtuais, conhecido como VASP (Virtual Assets Service Providers), por meio do qual são estabelecidas regras específicas para a utilização de ativos virtuais, como é o caso dos tokens e, neste caso, pode-se falar nos tokens de governança. Assim, as DAOs interessadas em realizar a emissão deste tipo de token nas Ilhas Cayman devem se atentar a este regramento específico, de modo a evitar eventuais restrições e multas, bem como o risco de dissolução da Fundação.
A flexibilidade também se estende quanto à documentação necessárias para as DAOs incorporadas neste conhecido paraíso fiscal, tendo em vista que, observadas limitações mínimas, o Memorando de constituição da Fundação e os Artigos de associação podem incluir quase que qualquer estrutura de governança, desde que seja contemplada a gestão de pelo menos um diretor, supervisionado por pelo menos um supervisor e possua um secretário.
Menciona-se, ainda, que os diretores e supervisores não necessitam ser pessoas naturais, além de poderem cumular ambas as funções. Ademais, as Fundação constituídas nas Ilhas Cayman dispensam a necessidade legal de manutenção de registro ativo de beneficiários, podendo designá-los enquanto “classe” de pessoas, como “tokenholders”, por exemplo, podendo ser remunerados de forma distinta.
Por derradeiro, a jurisdição da famosa ilha na costa do Caribe se posiciona de modo neutro com relação às questões fiscais, excluindo as Fundações para DAOs do regime de substância econômica[5] adotado pelo país para determinadas atividades, além de não necessitar mover recursos para o país com o objetivo de comprová-los.
3. Considerações finais
A constituição de um envoltório jurídico para DAOs ainda segue sendo um desafio de caráter transnacional, no qual existem nuances nos mais variados aspectos, desde a visão que os membros possuem a respeito da formalização da organização sob um ponto de vista “estatal”, até a ótica dos próprios Estados soberanos quando se defrontam com este ainda recente fenômeno.
De modo a lidar com esse cenário, determinadas jurisdições mundo a fora adotaram posturas atrativas a iniciativas como as DAOs. É este o caso das Ilhas Cayman que, além do estigma de “paraíso fiscal”, tem buscado se aproximar de iniciativas de caráter inovador, com o intuito de se tornar um Hub que abriga estruturas tecnológicas.
O futuro ainda é incerto, não há como prever movimentações em um cenário global a respeito do fenômeno das DAOs. Entretanto, Ilhas Cayman segue sendo uma excelente opção para aqueles que desejam se situar nas fronteiras do desenvolvimento de novas formas organizacionais e modelos de negócio disruptivos relacionados à tecnologia blockchain.
REFERÊNCIAS
BERGSTROM, James; CONE, Tim. Cayman Islands economic substance requirements - an overview. Disponível em: <https://www.ogier.com/publications/cayman-islands-economic-substance-requirements>. Acesso em 19/09/2022.
CAYMAN ISLAND. Foundation Companies Law, Law 29 of 2017. Disponível em: <https://legislation.gov.ky/cms/images/LEGISLATION/PRINCIPAL/2017/2017-0029/FoundationCompaniesAct_Act%2029%20of%202017.pdf>. Acesso em 18/09/2022.
DUBNEVYCH, Nestor. Cayman Islands Foundation as a DAO Legal Wrapper. Disponível em: <https://legalnodes.com/article/caymanian-foundation-for-dao>. Acesso em 18/09/2022.
KRUGER, Bradley; ROBINSON, Michael. The Foundation Company as a Decentralised Autonomous Organisation (DAO) in the Cayman Islands. Disponível em: <https://www.ogier.com/publications/the-foundation-company-as-a-decentralised-autonomous-organisation-dao-in-the-cayman-islands>. Acesso em 19/09/2022.
CAREY, Bernadette; DUNCAN, Chris. Cayman Islands Foundation Companies for DAOs, Defi and NFTs. Disponível em: <https://www.careyolsen.com/briefings/cayman-islands-foundation-companies-daos-defi-and-nfts>. Acesso em 18/09/2022.
[1] De modo geral, Civil Law é o sistema jurídico proveniente das raízes do Direito romano, se baseando fortemente no texto das leis para a composição do entendimento aos casos em espécie. Trata-se, portanto, de sistema no qual o arcabouço legislativo possui maior relevância do que a jurisprudência formada.
[2] Diferentemente de sua contraparte, o modelo Commom Law consiste em sistema jurídico adotado comumente por países de tradição inglesa, por meio as decisões judiciais proferidas pelos juízes tornam-se a base do entendimento sobre as matérias jurídicas. Assim, diz-se que a jurisprudência se sobrepõe às leis no que se refere à relevância para a composição do entendimento a ser aplicado no caso concreto.
[3] Trata-se de episódio ocorrido no ano de 2016, no qual uma DAO foi criada, utilizando a blockchain Ethereum, especificamente com a finalidade de tornar-se um fundo de investimento descentralizado. No total, estima-se que a The DAO tenha levantado 3,6 milhões de Ether (ETH), o equivalente a US$ 139 milhões, ou R$ 717 milhões, na época. Contudo, o experimento não foi bem-sucedido em virtude da intervenção de hacker que, explorando uma vulnerabilidade, desviou parcela relevante dos ETH que compunham o tesouro da DAO.
[4] Cf. The Foundation Company as a Decentralised Autonomous Organisation (DAO) in the Cayman Islands. Disponível em: <https://www.ogier.com/publications/the-foundation-company-as-a-decentralised-autonomous-organisation-dao-in-the-cayman-islands>. Acesso em 19/09/2022.
[5] O Regime de substância econômica é um Ato de Cooperação Tributária Internacional firmado por membros da OCDE que sejam signatários do BEPs. Este Ato é composto pelos requerimentos de “entidade relevante” e “atividade relevante”, por meio da qual deve ser realizada a entrega anual de relatório contendo informações a respeito das atividades neste período. Cf. Cayman Islands economic substance requirements - an overview. Disponível em: <https://www.ogier.com/publications/cayman-islands-economic-substance-requirements>. Acesso em 19/09/2022.
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